Dedos delicados
batem na minha vidraça.
Noite de garoa.
30.9.10
Filmes #7
Acho engraçado como, quando entram na locadora, as pessoas correm direto para a prateleira dos lançamentos como se todo o resto da loja fosse invisível, como se, depois de um mês, os filmes deixassem de valer a pena. Aqui em casa mesmo, toda vez que chego em casa com uma sacolinha, ouço sempre a mesma reclamação: "ai, mas é tudo catálogo..."
Era só isso que eu queria dizer.
Era só isso que eu queria dizer.
22.9.10
Quinze
Anda rolando no Facebook essa coisa de listar quinze livros e quinze filmes. Os quinze que primeiro vierem à cabeça, sem pensar muito, sem colocar em nenhuma ordem. Agradeço as indicações. Resolvi responder por aqui, que é mais legal.
Pois bem, quinze livros:
(E, na mesma hora em que terminei o post, já me arrependi de ter escrito, bateu a maior insegurança, lembrei de outros e concluí que está tudo errado. Mas juro que vou resistir à tentação de editar.)
Pois bem, quinze livros:
- Dom Quixote, M. de Cervantes
- Ficções, J.L. Borges
- O aleph, J.L. Borges
- As cidades invisíveis, I. Calvino
- As pequenas memórias, J. Saramago
- O tempo e o vento, E. Verissimo
- O caso dos dez negrinhos (mesmo sem saber o final), A. Christie
- O senhor dos anéis, J.R.R. Tolkien
- Tao te ching, Lao Tse
- Moby Dick, H. Melville
- Walden, H.D. Thoreau
- Musashi, E. Yoshikawa
- Comédias da vida privada, L.F. Verissimo
- A elegância do ouriço, M. Barbery
- Anedotas do destino, K. Blixen
- O poderoso chefão, F.F. Coppola
- Casablanca, M. Curtiz
- O tigre e o dragão, A. Lee
- Star wars, G. Lucas
- Por um punhado de dólares, S. Leone
- Kill Bill, Q. Tarantino
- A viagem de Chihiro, H. Miyazaki
- Psicose, A. Hitchcock
- James Bond contra o satânico dr. No, T. Young
- A história sem fim, W. Petersen
- O silêncio dos inocentes, J. Demme
- Spartacus, S. Kubrick
- Ben Hur, W. Wyler
- Herói, Z. Yimou
- Depois da chuva, A. Kurozawa
(E, na mesma hora em que terminei o post, já me arrependi de ter escrito, bateu a maior insegurança, lembrei de outros e concluí que está tudo errado. Mas juro que vou resistir à tentação de editar.)
20.9.10
Cupons de desconto
Era uma segunda-feira chuvosa de uma semana que prometia ser nada animadora quando o ding dong da caixa de e-mails dele anunciou algo que não era "reunião urgente às cinco" e nem "últimas alterações do cliente".
Era uma segunda-feira chuvosa de uma semana que prometia ser nada animadora quando ela leu "e-mail enviado com sucesso" e sorriu ao imaginar que ele também sorria do outro lado da cidade.
E ele sorriu.
Os dois sorriam e um cupom de desconto de restaurante piscava na tela. "Economize tantos porcento na apresentação deste", esse tipo de coisa.
Volta e meia, ele recebia um desses, nunca descobriu de quem. Anônimos. Alguém os encaminhava desses sites de clube de desconto. Alguém que com certeza o conhecia, sabia do que gostava. As sugestões sempre certeiras: restaurante chinês, cerveja especial, camiseta bem humorada.
E era ela que encaminhava. Lembrava que, ah!, esse restaurante é do tipo que ele gosta, esse bar é para ele sentar com os amigos e desanuviar um pouco, essas camisetas são a cara dele.
Foram namorados, terminaram há quase um ano e se for ver, na verdade na verdade, nenhum dos dois sabe explicar por quê. Terminaram, cada um para seu lado e nunca mais se viram. Mas ela ainda se preocupava, ainda sorria ao saber que ele sorria do outro lado da cidade.
À noite, ele, cupom na mão, jantou no tal restaurante.
Ela ficou em casa, tomando sopa de pacotinho.
Era uma segunda-feira chuvosa de uma semana que prometia ser nada animadora quando ela leu "e-mail enviado com sucesso" e sorriu ao imaginar que ele também sorria do outro lado da cidade.
E ele sorriu.
Os dois sorriam e um cupom de desconto de restaurante piscava na tela. "Economize tantos porcento na apresentação deste", esse tipo de coisa.
Volta e meia, ele recebia um desses, nunca descobriu de quem. Anônimos. Alguém os encaminhava desses sites de clube de desconto. Alguém que com certeza o conhecia, sabia do que gostava. As sugestões sempre certeiras: restaurante chinês, cerveja especial, camiseta bem humorada.
E era ela que encaminhava. Lembrava que, ah!, esse restaurante é do tipo que ele gosta, esse bar é para ele sentar com os amigos e desanuviar um pouco, essas camisetas são a cara dele.
Foram namorados, terminaram há quase um ano e se for ver, na verdade na verdade, nenhum dos dois sabe explicar por quê. Terminaram, cada um para seu lado e nunca mais se viram. Mas ela ainda se preocupava, ainda sorria ao saber que ele sorria do outro lado da cidade.
À noite, ele, cupom na mão, jantou no tal restaurante.
Ela ficou em casa, tomando sopa de pacotinho.
15.9.10
Dez negrinhos
Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;
Um deles se engasgou e então ficaram nove.
-Agatha Christie
Eu tinha, sei lá, uns dez anos e, depois do almoço, peguei um livro antigo do meu pai, daqueles amarelados e com as páginas meio caindo. Eu tinha certo preconceito com aqueles livros porque eram amarelados e tinham páginas caindo, mas estava cansado dos meus de sempre –Gulliver, Sinbad, Mogli– e resolvi arriscar. A capa era feia. Chamava-se O caso dos dez negrinhos. Comecei a ler, como quem não quer nada.
Eletrizante, essa é a palavra: eletrizante.
Uma mansão numa ilha. Dez pessoas estranhas. Assassinato. Sobram, então, nove pessoas. Depois, oito e sete e seis.
Era época de aula de manhã e nada para fazer à tarde –a lição de casa eu copiava, rapidinho antes de entrar na sala, de uma menina apaixonada por mim, que eu com dez anos era meio cafajeste, depois tomei jeito–, então pude me dar a um luxo que hoje em dia é raro: li tudo de uma sentada só. O dia já estava escurecendo quando fui chegando ao final do mistério, fervendo a cabeça com um monte de soluções e vislumbrando uma promissora carreira de detetive particular.
Cinco pessoas. Quatro. Três.
Mas eis que. Eis que.
Quando virei uma página, dei com um trecho que, ué, pareceu meio familiar. Virei mais a próxima e mais outra: já tinha lido. Então notei que o livro tinha um defeito: trocaram na gráfica os últimos cadernos de impressão. Então, ao invés das últimas páginas, eu tinha umas repetidas da metade. Necas de final.
Como o bendito devia ter sido comprado há uns vinte anos, era tarde demais para ir à livraria e pedir para trocar. Quando meu pai chegou em casa, corri para perguntar e ele me respondeu só uma risada divertida. Também não sabia o final.
Até hoje não sei quem é o assassino. Ficou esse trauma na minha vida de leitor.
E enquanto eu escrevia isso me veio à cabeça a ideia de guardar o livro para pregar a mesma peça no meu filho.
* * *
120° aniversário da Dama do Suspense, minha singela homenagem.
Um deles se engasgou e então ficaram nove.
-Agatha Christie
Eu tinha, sei lá, uns dez anos e, depois do almoço, peguei um livro antigo do meu pai, daqueles amarelados e com as páginas meio caindo. Eu tinha certo preconceito com aqueles livros porque eram amarelados e tinham páginas caindo, mas estava cansado dos meus de sempre –Gulliver, Sinbad, Mogli– e resolvi arriscar. A capa era feia. Chamava-se O caso dos dez negrinhos. Comecei a ler, como quem não quer nada.
Eletrizante, essa é a palavra: eletrizante.
Uma mansão numa ilha. Dez pessoas estranhas. Assassinato. Sobram, então, nove pessoas. Depois, oito e sete e seis.
Era época de aula de manhã e nada para fazer à tarde –a lição de casa eu copiava, rapidinho antes de entrar na sala, de uma menina apaixonada por mim, que eu com dez anos era meio cafajeste, depois tomei jeito–, então pude me dar a um luxo que hoje em dia é raro: li tudo de uma sentada só. O dia já estava escurecendo quando fui chegando ao final do mistério, fervendo a cabeça com um monte de soluções e vislumbrando uma promissora carreira de detetive particular.
Cinco pessoas. Quatro. Três.
Mas eis que. Eis que.
Quando virei uma página, dei com um trecho que, ué, pareceu meio familiar. Virei mais a próxima e mais outra: já tinha lido. Então notei que o livro tinha um defeito: trocaram na gráfica os últimos cadernos de impressão. Então, ao invés das últimas páginas, eu tinha umas repetidas da metade. Necas de final.
Como o bendito devia ter sido comprado há uns vinte anos, era tarde demais para ir à livraria e pedir para trocar. Quando meu pai chegou em casa, corri para perguntar e ele me respondeu só uma risada divertida. Também não sabia o final.
Até hoje não sei quem é o assassino. Ficou esse trauma na minha vida de leitor.
E enquanto eu escrevia isso me veio à cabeça a ideia de guardar o livro para pregar a mesma peça no meu filho.
* * *
120° aniversário da Dama do Suspense, minha singela homenagem.
14.9.10
Ei, você!
Sim, senhor. Sim, senhora. Este aqui é para você. Você, que me lê e nunca comentou.
Na verdade, eu estou aqui morrendo de vergonha, procurando o melhor jeito de pedir isso sem parecer um vaidoso sedento por atenção. Estou aqui escolhendo as palavras. Gaguejando, olhando para o chão, chutando umas pedrinhas.
É que o Rob Gordon, grande amigo do grande Championship Vinyl, começou uma campanha que eu quero comprar: "dê vida a este blog. comente!". Tenho pensado muito nisso desde então.
Estivemos conversando também, o Rob, uns outros caras bacanas e eu –todos blogueiro profissionais, eu sou o único amador– que a coisa anda meio fria na blogosfera. Uns tempos atrás tínhamos comentários, memes, postagens cruzadas, textos colaborativos, prêmios, indicações, jogos... Talvez eu seja só um velho cowboy ultrapassado, mas, pô, precisamos retomar isso, precisamos soprar as brasinhas antes que a fogueira apague.
Coisa legal desde o começo do Acepipes são os amigos que conheci. Todo mundo que já passou por essa salinha, sentou no sofá, fez um afago no cachorro. Alguns saíram daqui para o e-mail, outros para o twitter, alguns para uma cerveja de verdade num bar de verdade (e alguns, eu admito, acabei deixando escapar, e peço desculpas pela falta de gentileza). E, putz, isso é tão legal.
Mas só pude conhecê-los porque soube que eles estavam do outro lado aí da conexão.
Poxa. Já tomei bronca de chefe porque estava escrevendo no meio do expediente, já atrasei em encontro com a noiva porque estava terminando de postar, já pedi caneta emprestada ao garçom para anotar ideia em guardanapo no meio do almoço. Só para contar alguma história para você.
Poxa.
Por trás desse blog também bate um coração.
E, claro –sempre!–, obrigado por me ler, obrigado pela paciência que há anos você tem comigo. É por você que o Acepipes existe. Porque, mesmo sem comentar, eu sei que você está aí.
E, só de birra, não vou autorizar comentários neste post.
* * *
Já eu, de minha parte, vou entrar para a campanha como comentarista. Afinal, mais que autor eu sou leitor. Vou tirar o pó dos favoritos –sim, eu guardo o blog de cada um que passa por aqui nos favoritos– e fazer umas visitas. Não repare se eu chegar por aí, assim sem avisar.
Na verdade, eu estou aqui morrendo de vergonha, procurando o melhor jeito de pedir isso sem parecer um vaidoso sedento por atenção. Estou aqui escolhendo as palavras. Gaguejando, olhando para o chão, chutando umas pedrinhas.
É que o Rob Gordon, grande amigo do grande Championship Vinyl, começou uma campanha que eu quero comprar: "dê vida a este blog. comente!". Tenho pensado muito nisso desde então.
Estivemos conversando também, o Rob, uns outros caras bacanas e eu –todos blogueiro profissionais, eu sou o único amador– que a coisa anda meio fria na blogosfera. Uns tempos atrás tínhamos comentários, memes, postagens cruzadas, textos colaborativos, prêmios, indicações, jogos... Talvez eu seja só um velho cowboy ultrapassado, mas, pô, precisamos retomar isso, precisamos soprar as brasinhas antes que a fogueira apague.
Coisa legal desde o começo do Acepipes são os amigos que conheci. Todo mundo que já passou por essa salinha, sentou no sofá, fez um afago no cachorro. Alguns saíram daqui para o e-mail, outros para o twitter, alguns para uma cerveja de verdade num bar de verdade (e alguns, eu admito, acabei deixando escapar, e peço desculpas pela falta de gentileza). E, putz, isso é tão legal.
Mas só pude conhecê-los porque soube que eles estavam do outro lado aí da conexão.
Poxa. Já tomei bronca de chefe porque estava escrevendo no meio do expediente, já atrasei em encontro com a noiva porque estava terminando de postar, já pedi caneta emprestada ao garçom para anotar ideia em guardanapo no meio do almoço. Só para contar alguma história para você.
Poxa.
Por trás desse blog também bate um coração.
E, claro –sempre!–, obrigado por me ler, obrigado pela paciência que há anos você tem comigo. É por você que o Acepipes existe. Porque, mesmo sem comentar, eu sei que você está aí.
E, só de birra, não vou autorizar comentários neste post.
* * *
Já eu, de minha parte, vou entrar para a campanha como comentarista. Afinal, mais que autor eu sou leitor. Vou tirar o pó dos favoritos –sim, eu guardo o blog de cada um que passa por aqui nos favoritos– e fazer umas visitas. Não repare se eu chegar por aí, assim sem avisar.
2.9.10
Aos pedaços
Volta e meia me pegam olhando para um banco de praça, um tufo de grama que brotou no meio do asfalto e me puxam as orelhas porque fiquei mudo e me perdi na conversa. O pessoal costuma não entender.
Sei lá quando começou; sei que é de menino. Uma vez me mudei de cidade, de estado, e tive de começar tudo do zero, foi uma barra. Agora, anos depois, já estou bem estabelecido e sigo firme no meu ofício: eu me aproprio de pedaços da cidade.
É impossível amar uma cidade inteira, o que me interessa são só uns pedacinhos. É de pedacinhos que se faz uma cidade e alguns me agradam em especial, então eu os tomo para mim.
Meu inventário é repleto de árvores: tenho, por exemplo, uma meia dúzia de paineiras, dois pessegueiros e três figueiras. Araucárias são oito, desde que uma foi derrubada semana passada, vítima de gente incomodada com os galhos caídos no quintal. Sou dono também de uma cerejeira, mas infelizmente não dela toda: são meus só os galhos do lado de cá. Tenho quase certeza de que um senhor japonês que volta e meia encontro caminhando pela praça com os braços para trás é o dono da outra parte. Mas temos convivido pacificamente.
Não chego ao ponto de tomar casas inteiras, não sou assim pretensioso. Mas sou o dono, por exemplo, do telhadinho em forma de cone na entrada de um casarão, assim como da janela rodeada de trepadeiras no segundo andar de um predinho e dos lambrequins na varanda de uma casinha de madeira. O relógio sem ponteiros na fachada de um sobrado colonial meio caindo aos pedaços: é meu.
Uma vez cheguei a ter um anjo de túmulo, um querubim magnífico de asas abertas e espada em punho que aparecia por cima do muro do cemitério, mas o acabei trocando por um metro e meio do caminho de pedras em frente da capela.
De algumas coisas eu sou dono só em certos horário do dia. Aquele trechinho da alameda só me interessa às quatro e quinze da tarde, quando a luz passa entre os galhos dos álamos e tinge a fachada da charutaria de um tom esverdeado. Já o chafariz só é meu pela manhã, quando os sabiás vão tomar banho por lá; depois pode ser de quem quiser.
Já outros bens são mais difíceis de listar. Sou o feliz proprietário do cheiro de café que se sente quando se atravessa uma certa rua numa certa altura, do raio de luz vermelho –só do vermelho– que passa pelo vitral lateral da basílica numa certa época do ano, do barulho oco que faz quando se pisa numa certa pedra solta do calçamento.
É tudo meu, pago com sorrisos silenciosos, olhares admirados, suspiros de satisfação. Às vezes à vista, às vezes a prestação.
Mas não é assim tão fácil, não ganhei nada assim, de mão beijada. É trabalho duro, muitos passeios, muitos torcicolos de olhar para cima, muitos esbarrões no poste porque estava olhando para outro lado... Sem contar que é difícil ser dono de tantas coisas; preciso sempre passar pelos meus pedaços de cidade para ver se tudo está indo bem.
Mas, tirando um portãozinho que foi arruinado por uma nova pintura cinza, sem graça e quase criminosa, tudo tem andado bem.
Esses dias, tenho desviado meu caminho por uns quarteirões para passar numa rua onde dez ou doze ipês amarelos coloriram o chão e o teto de um dourado que, por Deus, só vendo para saber. Estou me segurando para não tomá-los todos, de uma vez só, para mim. Acho que não resistirei, amanhã cedinho passo lá.
Sei lá quando começou; sei que é de menino. Uma vez me mudei de cidade, de estado, e tive de começar tudo do zero, foi uma barra. Agora, anos depois, já estou bem estabelecido e sigo firme no meu ofício: eu me aproprio de pedaços da cidade.
É impossível amar uma cidade inteira, o que me interessa são só uns pedacinhos. É de pedacinhos que se faz uma cidade e alguns me agradam em especial, então eu os tomo para mim.
Meu inventário é repleto de árvores: tenho, por exemplo, uma meia dúzia de paineiras, dois pessegueiros e três figueiras. Araucárias são oito, desde que uma foi derrubada semana passada, vítima de gente incomodada com os galhos caídos no quintal. Sou dono também de uma cerejeira, mas infelizmente não dela toda: são meus só os galhos do lado de cá. Tenho quase certeza de que um senhor japonês que volta e meia encontro caminhando pela praça com os braços para trás é o dono da outra parte. Mas temos convivido pacificamente.
Não chego ao ponto de tomar casas inteiras, não sou assim pretensioso. Mas sou o dono, por exemplo, do telhadinho em forma de cone na entrada de um casarão, assim como da janela rodeada de trepadeiras no segundo andar de um predinho e dos lambrequins na varanda de uma casinha de madeira. O relógio sem ponteiros na fachada de um sobrado colonial meio caindo aos pedaços: é meu.
Uma vez cheguei a ter um anjo de túmulo, um querubim magnífico de asas abertas e espada em punho que aparecia por cima do muro do cemitério, mas o acabei trocando por um metro e meio do caminho de pedras em frente da capela.
De algumas coisas eu sou dono só em certos horário do dia. Aquele trechinho da alameda só me interessa às quatro e quinze da tarde, quando a luz passa entre os galhos dos álamos e tinge a fachada da charutaria de um tom esverdeado. Já o chafariz só é meu pela manhã, quando os sabiás vão tomar banho por lá; depois pode ser de quem quiser.
Já outros bens são mais difíceis de listar. Sou o feliz proprietário do cheiro de café que se sente quando se atravessa uma certa rua numa certa altura, do raio de luz vermelho –só do vermelho– que passa pelo vitral lateral da basílica numa certa época do ano, do barulho oco que faz quando se pisa numa certa pedra solta do calçamento.
É tudo meu, pago com sorrisos silenciosos, olhares admirados, suspiros de satisfação. Às vezes à vista, às vezes a prestação.
Mas não é assim tão fácil, não ganhei nada assim, de mão beijada. É trabalho duro, muitos passeios, muitos torcicolos de olhar para cima, muitos esbarrões no poste porque estava olhando para outro lado... Sem contar que é difícil ser dono de tantas coisas; preciso sempre passar pelos meus pedaços de cidade para ver se tudo está indo bem.
Mas, tirando um portãozinho que foi arruinado por uma nova pintura cinza, sem graça e quase criminosa, tudo tem andado bem.
Esses dias, tenho desviado meu caminho por uns quarteirões para passar numa rua onde dez ou doze ipês amarelos coloriram o chão e o teto de um dourado que, por Deus, só vendo para saber. Estou me segurando para não tomá-los todos, de uma vez só, para mim. Acho que não resistirei, amanhã cedinho passo lá.
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