sábado, 24 de março de 2012








 [NÃO DEVEMOS SER FORTES]



Não devemos ser fortes quando está em causa a transfiguração. Há uma espécie de força que é uma espécie de fraqueza, e uma espécie de fraqueza que é uma espécie de força. Como distinguir? Se no pescoço se notar o vinco da corda é porque não estamos a viver.




Por Vasco Gato










A MÚSICA



Depressa
as gargantas
foram cortadas.

Agora, em ti, habitando-te:
música desse sangue
tão espesso,

tão mais espesso
que a água.




Por Luís Quintais

sábado, 10 de março de 2012








Era uma cigana, dessas que vendem destinos a troco de uma moeda. Verão seria, que me lembra o vestido branco de algodão que usei nesse dia. A cigana, longo cabelo, saia rodada, um xale de lantejoulas, mas verão seria, porque o vestido era branco. 
Eu desviei-me, assim como quem contorna um destino, mas adiante, a velha cigana salta-me ao caminho, agarra-me o braço e olha-me com olhos severos e maledicentes. Cada toque é uma violência, desejado ou não, mas ardendo sempre. Incomodou-me aquela mão estranha agarrando com força o meu braço nu, a pele que habito, a fronteira da minha intimidade. Desde pequena que tenho estranhos pudores. 
A força afrouxou, a mão dela desliza até à minha, troca o dorso pela palma e instintivamente os meus dedos abrem-se e dão-se-lhe. E com uma delicadeza que contradiz a rudeza da sua primeira abordagem, a velha pega na outra mão e expõe-na da mesma maneira. Duas mãos, porque há homens que nasceram com marcas de destinos vários, sete vidas os gatos, sete destinos o homem, mas só um nos é dado viver. Se acredito? Eu finjo. Porque é uma coisa bonita de se acreditar, o destino, a estrela de cinco pontas, a lua… 
Ela olha atentamente, cada prega um rabisco de uma vidência que eu não alcanço e de que suspeito. E vai falando baixinho, num linguarejo que não entendo. Vou imaginando o que me dirá, a felicidade costumada, sem saber que nem eu sei se é isso o que procuro. 
Estranho o que me disse. Cem lágrimas de distância. E enquanto vasculhava a carteira à procura do porta-moedas, volta-se e segue caminho, vendendo-me o destino a troco de nada.






Por Elisabete Albuquerque
Ler mais poesia sua em http://a-didascalia.blogspot.com/

sexta-feira, 9 de março de 2012










O. F. (1967-2007)




 Do que não precisamos agora é de brilhos fúteis,
truques verbais, exercícios de lirismo magoado.
As palavras são só palavras, nem coisas maiores
nem mais altas, apenas pedras que lançamos
ao poço para ouvir como se agitam as águas.
Lá fora o vento e os telhados agrestes, o céu
da cidade ostensivamente idêntico ao dos
dias felizes. Empilhamos, melancólicos,
livros que já foram mais transparentes.
Conferimos as margens, a mancha gráfica,
os indícios de uma perfeição talvez inútil.

Mesmo olhada de frente, a ausência
continua a ser cruel, o silêncio uma
ignomínia. Descemos à rua, bebemos
café, fingimos seguir em frente. As
palavras são pedras que afinal ficaram
nos bolsos, guardadas para um inimigo
que se ri e só destapa o rosto medonho
quando está fora do nosso alcance.








Por José Mário Silva

sábado, 3 de março de 2012





CONTAGEM DAS 8




da minha cama
observo
3 pássaros
num fio
de telefone.
um levanta voo
rapidamente.
depois
outro.
fica um,
 a seguir
ele também
abalou.
a minha máquina de escrever está
silenciosa
como um túmulo
e eu estou
reduzido
a observar
pássaros.
pensei apenas
em
dizer-to,
sacana.




Por Charles Bukowski
Tradução de Francisco Craveiro