domingo, 28 de fevereiro de 2010


DOENÇA BIPOLAR





Ora no cimo do monte,

se renasce como rio,

se dilata o horizonte,

sobrepuja o desafio;



ora à beira do abismo,

como se buraco negro,

quando o breu replica o sismo

e o ciclone severo;



ora o sol, brisa suave

e macios como o linho;

ora a mania mais grave,

depressão e desalinho:



este poema tem ar

de doente bipolar.






Por Domingos da Mota
(Ver mais poesia sua e de outros em http://domingosdamota.blogspot.com/)
Imagem de AAT


ONDE DIABOS EU







onde diabos eu me meti

desde que você partiu?



entro em casa e vasculho onde estou,

devo estar escondida em algum lugar

dos meus cantos, dos meus guardados.



mas, amiúde, dou de cara com você ausente,

enquanto eu continuo perdida.





Por Eugênia Fraietta

sábado, 27 de fevereiro de 2010



SENTENÇA






nunca mais vou comer nunca mais vou dançar nunca mais gozar

nunca mais vou decorar teu perfume pra senti-lo antes de dormir e

poder morrer em paz nunca mais vou me abandonar ao teu desejo

porque é sempre o meu desejo nunca mais vou ter certeza que o

melhor de todos os lugares é o teu olhar nunca mais vou deixar de

ser pra ser em você mais do que eu jamais fui nunca mais meus

dentros vão te contar os meus segredos nunca mais vou doar nunca

mais vou achar que, no meu mais corpo-gozo fui pra um lugar onde

nem corpo há, enquanto só tinha o tamanho do meu pleno corpo

trémulo nunca mais ninguém vai me beber para eu ganhar vida

nunca mais minha pequena casa habitada repleta pequena festa

satisfeita nunca mais nunca mais nunca mais nunca mais em mim

nunca mais eu assim






Por Eugênia Fraietta


FALSA TEMPESTADE





Neste exato momento

começa um forte vento

enorme

ele tapa o céu

anuncia a tempestade

me atrai

seu movimento

me encanta

com ele percebo a natureza em dança

feito uma cachoeira em cascata



agora,

voam meus papéis

mesmo em algaravia

mas a mim, ele segue delicado

e o toldo da varanda

com pretensões de asa delta

muda meu plano

olho a luz piscar

salvo um e-mail

e enquanto uma leve brisa

anuncia o falso alarme

fecho o pano

e retorno à luz

que encaminhará minhas palavras

de cá para lá

a tomar caipirinha





Por Ivan Bueno
Fotografia de Ivan Bueno
(mais poemas seus em www.eng-ivanbueno.blogspot.com)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010



BUM

BUM…



São Francisco! Que batida…

São sempre os mesmos



“Be my baby”

e eu dizendo que cresci.



Doze é mais que um dia que dá 3

metade meio

mês dos namorados

São Valentim

Santo Antônio

que bênção ter logo Junho

um mês de todos.






Por Carmen Sílvia Presotto
(ler mais poesia sua de outros em www.vidraguas.com.br)
Quadro de Antoine Vollon



A CONTRALUZ






Desnudo o meu olhar, este

olhar cerzido com longos,



longos fios num tear de luz:

nesse corpo aceso, ateado,



vivo, que amadura o fogo

e o fulgor – reluz: rútila



vertigem que amotina o trigo,

alucina o sol, e mesmo a



contraluz, ai dos olhos ávidos

(ai de mim cativo), quando chego



ao cimo de teus seios nus.





Por Domingos da Mota

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010



pode nem sempre ser assim; e eu digo

que se os teus lábios, que amei, tocarem

os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem

o seu coração, com o meu em tempos não muito distantes;

se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem

nesse silêncio que eu sei, ou nessas

palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado

ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;



se assim for , eu digo se assim for –

tu do meu coração, manda-me um recado;

que eu possa ir junto dele, e tomar as suas mãos,

dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.

Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro

cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.






Por e.e. cummings
Tradução de Jorge Fazenda Lourenço

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010



Anoitece na aldeia

e numa animação de fábula

as pessoas recolhem às casas.



Das chaminés, pelos telhados

o fumo já faz parte da noite



O amarelo das janelas

pontilha o preto.


O vento perdeu-se no bosque

e as crianças, nos cobertores

usufruem do medo.



Pelas imediações da aldeia

os lobos aproximam-se da realidade.





Por Daniel Maia-Pinto Rodrigues


poderia talvez esquecer algo que tenha escrito

e voltar a escreve-lo da mesma maneira.



poderia esquecer a vida que tenha vivido

e voltar a vivê-la da mesma maneira.



poderia esquecer a morte que morrerei amanhã

e voltar a morrê-la da mesma maneira.



mas há sempre um grão de pó da luz

que parte a engrenagem das repetições:

poderia esquecer algo que tenha amado

mas não voltar a amá-lo da mesma maneira.





Por Roberto Juarroz
Tradução de menino mau

domingo, 21 de fevereiro de 2010



VELHAS ROTINAS





acorda

lava-se

lê o jornal

bebe café

Assegura-se:

Nenhum crash na bolsa!

Constata:

Acréscimos na poupança!

Sorri, enquanto segura algumas lágrimas

ao abotoar o pijama.





Por Carmen Silvia Presotto
(Ver mais poesia sua e de outros em www.vidraguas.com.br)
Fotografia de Robert Parkeharrison

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A poesia de Eucanaã Ferraz



CARÍCIA





Demore-se no carinho,

de modo que no rosto do outro

vá a mão como se não fora

voltar. Repita,



demorando-se mais,

de modo que a mão descanse

naquele rosto, como se,

e se esqueça de que.



Repita, demore-se no carinho

como se a mão desse adeus,

agarrada ao rosto que se vai.

Outra vez: repita,



demorando-se mais

e mais, como se a mão bebesse

daquele rosto para, saciada, dormir

ali mesmo, ao pé da fonte.





Por Eucanaã Ferraz
Quadro de Gustav Klimt

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010



REDOMA DE VIDRO





Nas sombras de teus passos

recolho os ventos dos dias

e repasso cada grão de areia



Na maré das águas

reflexos das ondas

recolho os cabelos

retoco o batom



No eco das ondas

que, mansamente, banham meus pés

e agora mergulho

se debruça a mulher amada



Nas sombras dos meus pés

bordo um vitraux ao tempo

- além mar -

redomas de vidros

agora, repatriamos momentos...





Por Carmen Silvia Presotto
(Ver mais poesia sua e de outros em www.vidraguas.com.br)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010



LARGO DO PENEIREIRO



[para a Inês]





Tudo se perde, claro. Mas lembrarei

seguramente os olhos vermelhos

de um gato de Alfama e todos os poemas

que não escrevi contra mim próprio,

naquele pátio aberto a ciladas e dissipações.



Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas

num diálogo de guitarras desatentas.

Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,

e dizias com maior razão que aqueles olhos na noite

pertenciam a uma gata. Perdida, achada luz,



quando se percebe o desabrigo, a difícil

pertença a esta espécie de gente,

comunidade de loucos deserdados a que

o empregado, de bigode, chamou

«o pessoal da bebedeira». Porque isto

que não passa, sabemo-lo bem, é a vida



ou a morte, uma perda que dura

e que não se apaga assim, sob um cerco

de navalhas ou de inúteis, vigorosos

sentimentos. Por exemplo o amor,

essa estranha mistura de angústia, desejo

e novamente angústia. O não apenas sexo

de adormecer em braços reais

que afastem para sempre o mundo.



Mas acabo por subir cambaleante as escadas

à hora em que o vizinho de baixo

se prepara para ser uma pessoa altamente

honrada, no talho de baixo

que lhe dá sentido aos dias.



E não é dor, nem prazer, nem

ressentimento o que um corpo

sente, às seis da manhã, prostrado

na lama involuntária destes versos.

Antes um vazio imperfeito, uma

ferida sem lugar que nenhuns lábios,

sequer os teus, saberiam calar.



Fizeste, já disse, vinte e quatro anos.

Não esperes grande coisa da felicidade.





Por Manuel de Freitas
Fotografia de Robert Parkeharrison


A ALVORADA



Para Pablo G. Bao





Aquele lugar inóspito

fantasmal

frio

onde nunca

tinhas um cigarro

e os táxis

iam sempre

na direcção oposta.





Por Karmelo Iribarren
Tradução de Lp (do trapézio, sem rede)
Fotografia de William Gedney

domingo, 14 de fevereiro de 2010



O DOIDO





Diziam, verdade ou não, que fora rico e são

e que a despeito dos bens que possuira



acabara endividado, falido e torto. Talvez

por isso, embora miserável, a cabeça



reta, o andar

de quem governa e pisa terra extensa e sua



em perambular sob o sol absoluto,

absorvido sabe-se lá por que delírios.



Absorvido por sabe-se lá por que delírios,

insultava o vento e o vazio numa agitação



de cabelos e palavras e era comum

vê-lo penteando com seus dedos



encardidos a água das praias,

como se província sua,



como sua líquida mulher ou filha.

Viveu assim, entre feridas e piolhos,



até que desceu a noite

e uma pedra veio buscá-lo





Por Eucanaã Ferraz
Quadro de Salvador Dali

sábado, 13 de fevereiro de 2010



PRISÃO





Tu tinhas uma nascença que era uma prisão

uma certeza de estar concreto e unido

com a matéria da pedra

Que era uma tua sedimentação de vida

uma tua construção de movimentos a sair das grades

Era rico em Sol o teu peito de grades

concreto e unido sedimentavas dias de espera

duma letra que te abrisse os instintos para

falares de nada.

Era uma certeza de tu estares unido como uma raiz de mesa própria

uma certeza de estares virado para um

nascente de inconcretidade material

tinhas uma mão de peça de artilharia

de disparares para fora o conteúdo dos dias com raiz

de mesa própria

Eras um sol a nascer-te no sítio da grade

onde se punham ramos de quinta-feira de campo.

Tinhas uma natureza de estares sentado

sobre uma cadeira que era a tua

esperança de estares unido com a nascença do movimento.

Tinhas um cantarem-te os cabelos no dia de dentro

um ser-te uma mágica fusão de

olhar com dimensão de esperança fora.

Eras-te igual à matéria da tua animação de selva

íntima

igual ao cantar-te serôdio o tempo de pendular

na cabeça

Conhecias uma esperança de cortares os cabelos com uma

navalha de vento

mas era tua a inspiração de um modo interior de vida.

Criavas um espaço aberto na clareira de uma grade

que era um espaço celeste a cobrir de grego o cimento

Tu tinhas uma invenção de disparares saúde de dias

por fora duma mão.

Tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço

duma grade

tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia

inaugurado de verde

Que se te abrisse a letra

era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta

sem um rogar de branco.

O Sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de ti

era nada de o poente estar no sentido inverso.





Por António Gancho
Vídeo excerto de Control de Anton Corbijn
Música de Joy Division

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010



LENÇÓIS





esses lençóis que aí tem

disse a velha senhora

da secção de utensílios domésticos

são para cama de casal.

tem uma cama de casal ou uma

cama de solteiro?

bem, está a ver, respondi,

a minha cama é uma cama invulgar, é

uma cama tipo corpo e

meio.

descreva a sua cama, disse ela.

o quê?

descreva a sua

cama.

preferia não o fazer, disse.

bem, disse a velha senhora, quero que

saiba que os lençóis que aí tem são

para uma cama de casal, e se tem uma cama de

solteiro, é contra a lei

estatal.

o quê? perguntei. como

disse?

eu disse, que é contra a lei

estatal.

ou seja? perguntei.

ou seja, não pode devolver esses lençóis

depois de ter aberto a

embalagem.

está bem, respondi, dê-me um par de individuais.

tratou-me então com confortável

desdém. penso que a velha senhora teria estado nos

lençóis toda a sua

vida. penso que deviam colocar raparigas jovens

na secção dos lençóis.

apesar de tudo, lençóis não me fazem pensar de todo

em dormir.

mas em algo completamente

diferente. especialmente lençóis brancos acabados de

estrear.

deviam colocar velhas senhoras como ela na secção

de comida para cão, ou na de jardinagem e

quando ela me deu os individuais eu soube que ela soube que eu dormia

sozinho. tal como

ela.





Por Charles Bukowski
Tradução de menino mau

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010



Ando um pouco acima do chão

Nesse lugar onde costumam ser atingidos

Os pássaros

Um pouco acima dos pássaros

No lugar onde costumam inclinar-se

Para o voo



Tenho medo do peso morto

Porque é um ninho desfeito



Estou ligeiramente acima do que morre

Nessa encosta onde a palavra é como pão

Um pouco na palma da mão que divide

E não separo como o silêncio em meio do que escrevo



Ando ligeiro acima do que digo

E verto o sangue para dentro das palavras

Ando um pouco acima da transfusão do poema



Ando humildemente nos arredores do verbo

Passageiro num degrau invisível sobre a terra

Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores

No meio dos incêndios

Estou um pouco no interior do que arde

Apagando-me devagar e tendo sede

Porque ando acima da força a saciar quem vive

E esmago o coração para o que desce sobre mim



E bebe






Por Daniel Faria
Video de David Fonseca

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010



Se pássaro, voaria

Se peixe, nadaria

Se planta, cresceria



Humana?!



Deslizo

Debato

Decresço



No ar e no mar

caio



Na terra

com personagens

crio letras...





Por Carmen Sílvia Presotto
(ver mais poesia sua e de outros em www.vidraguas.com.br)
Desenho de Filipe Abranches


Ando sem música

esvazio minha cabeça

e nela coloco um corpo.



Acéfalo!



Busco

e deslizo entre mundos



e…

Se encontrarem um vagante cérebro,

feliz por cometer loucuras,

não me avisem!



Ele pode ser eu.





Por Carmen Sílvia Presotto
(ver mais poesia sua e de outros em http://www.vidraguas.com.br/)

Imagem de AAT

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010



Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais

este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.

Fecha os olhos agora e sossega – o pior já passou

há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão

desvia os passos do medo. Dorme, meu amor –



a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste

e pode levantar-se como um pássaro assim que

adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra

não hão-de derrubar-me – eu já morri muitas vezes

e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos



agora e sossega – a porta está trancada; e os fantasmas

da casa que o jardim devorou andam perdidos

nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,



meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e

nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já

olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,

de guarda aos pesadelos – a noite é um poema

que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.





Por Maria do Rosário Pedreira
Quadro de Marc Chagall

sábado, 6 de fevereiro de 2010



REVELAÇÂO





Hoje só fotografei árvores,

Dez, cem, mil.

Vou revelá-las à noite.

Quando a alma for câmara escura.

Depois vou classificá-las:

Segundo as folhas, os anéis dos troncos,

Segundo as suas sombras.

Ah, como as árvores

Entram facilmente umas nas outras!

Vejam, agora só me resta uma.

É esta que vou fotografar outra vez

E vou observar com assombro

Que se parece comigo.

Ontem só fotografei pedras.

E a pedra afinal

Parecia-se comigo.

Anteontem – cadeiras –

E a que resultou

Parecia-se comigo.



Todas as coisas se parecem terrivelmente

Comigo…



Tenho medo.





Por Marin Sorescu
Tradução colectiva revista por Egito Gonçalves
Imagem de AAT
XADREZ





Eu movo um dia branco,

Ele move um dia preto.

Eu avanço com um sonho,

Ele manda-o para a guerra.

Ele ataca os meus pulmões

Eu fico um ano no hospital a pensar,

Faço uma combinação brilhante

E ganho-lhe um dia preto.

Ele move uma desgraça

E ameaça-me com o cancro

(Que por agora avança em forma de cruz),

Mas ponho à sua frente um livro

E obrigo-o a recuar.

Ganho mais algumas peças,

Mas, reparem, metade da minha vida

Já está fora de jogo.

- Vou dar-te cheque e perdes o optimismo

Diz ele.

- Não faz mal, gracejo eu,

Faço roque dos sentimentos.



Atrás de mim a minha mulher, os meus filhos,

O sol, a lua e os outros mirones

Tremem por cada jogada minha.



Eu acendo um cigarro

E retomo a partida.





Por Marin Sorescu
Tradução colectiva revista por Egito Gonçalves


4:48 PSICOSE





“Estou triste

Sinto que não há esperança no futuro e que as coisas não podem melhorar

Estou farta e insatisfeita com tudo

Sou um fracasso completo como pessoa

Sou culpada, estou a ser castigada

Gostava de me matar

Sabia chorar mas agora estou para além das lágrimas

Perdi o interesse nas outras pessoas

Não consigo tomar decisões

Não consigo comer

Não consigo dormir

Não consigo pensar

Não consigo ultrapassar a minha solidão, o meu medo, o meu desgosto

Sou gorda

Não consigo escrever

Não consigo amar

O meu irmão a morrer, o meu amante a morrer, estou a matá-los aos dois

Invisto na direcção da minha morte

Estou aterrorizada com a medicação

Não consigo fazer amor

Não consigo foder

Não consigo estar sozinha

Não consigo estar com os outros

As minhas ancas são grandes de mais

Não gosto dos meus órgãos genitais

Às 4:48

quando o desespero me visitar

enforco-me

ao som da respiração do meu amante.”





Por Sarah Kane
Tradução de Pedro Marques

Imagem de AAT



Estrela do Pastor,

ouve esta guitarra:



se meu amor me ama,

a porta bata,

vento fino,

flor na estampa do lençol

se abra

abrupta.



Estrela polar,

ouvido de lata:



se meu amor pensa em mim,

ruído de asas e

o limo da hora

escorra das calhas,

alguém assobie,

abelhas.



Asterisco à toa,

acrobata:



se meu amor não me ama,

os barcos retornem já,

a lua se parte

ao meio,

cai uma banda na rua,

a outra, no fundo do mar.



Estrela cadente,

mate-me.





Por Eucanaã Ferraz
Quadro de Marc Chagall

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010



PARIS - TEXAS





Estava sentada ao balcão

Vestia uma longa camisola cor de púrpura

De súbito olhou-o sem o reconhecer

na penumbra do bar -

o tempo de chegar à conclusão

que era mais fácil desprender-se da sua sombra

do que desse olhar





Por Jorge Sousa Braga

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010



BOA CONSTRICTOR





estava enrolada num galho

entre folhas nem se mexia

a danada

me viu era hora do almoço

e me disse na língua das cobras:



parada



virei o tronco ela já vinha

calculava minha espinha

cobreava

me poupe eu disse

e ela na língua das cobras

negava:



você sabe porque veio

honeypie

e sabe para onde vai




me envolveu com destreza

me apertou bem as pernas

me prendeu de jeito

até que meu peito

ficou maior

que a alma



um crec crac

de ossos quebrando

uma lágrima escorrendo:

parecia amor

a falta de ar

o sangue subindo para a cabeça



onde toda a história começa.





Por Angélica Freitas

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010



CLONIX





À derradeira cápsula dos analgésicos

contra as dores menstruais que me deixou do

tempo em que partilhávamos os dias e os

medicamentos temi: são de naturezas

diversas a dor de dentes ela e das duas

apenas é provável o retorno de uma.



Grassam-me pela boca raízes funestas

de molares há muito desaparecidos

e que é necessário extrair: o terror

da língua – já afectada gagueja em certas

palavras – olhando os vultos inchados como

cadáveres que voltaram à superfície.



O dentista faz desfilar as ferramentas

à beira dos meus olhos descrevendo-me os

procedimentos: tantas coisas de escavar

de estropiar mas fascinou-me sobretudo

uma pequena pinça que largaria o

meu monstruoso desamor numa tacinha:



plim.





Por António Gregório
Imagem: excerto de quadro de Joan miró