Ela me chama de bombom. Parece meio ridículo falando assim, palavra solta ao vento sem nenhum contexto e, pensando de novo agora, soa mesmo pouca coisa, sem aqueles olhos mansos pra emoldurar todo o tamanho do sentido que essa palavra, quando ela fala, tem. Mas não é pouco não, é muito, você não faz ideia.
Conheci a Nega no baile charme, aqui mesmo no Complexo, lá em cima na quadra. Tá vendo os meus olhos brilhando esse tanto? É ela aqui dentro, rapaz, só de lembrar daquele dia dá vontade de chorar. Fazia uma noite bonita, de lua quase cheia, tipo essa assim de hoje. Verão carioca escaldante pede uma gelada, né? E era sexta-feira. Saí um pouco pra relaxar com a rapaziada depois de um dia de cão e dei com ela lá, quase deusa, flutuando no meio da multidão. Meu coração parou, faltou o ar, tudo rodou. No mesmo minuto eu disse pra mim mesmo: é ela! A partir dali, nunca mais soltei o avião, e lá se vão mais de dez anos.
Ela me chama de bombom e ontem nós discutimos feio. Ela disse que eu não ia, eu bati o pé que ia. Aí ela chorou e falou que tinha medo. Eu respondi que também tenho, oras, desde que me entendo por gente, mas que, ainda assim, estaria lá. Ela gritou que eu não a amava, que era um irresponsável, baderneiro, que jamais teria um filho com alguém sem rumo feito eu. Aí eu não aguentei e esbravejei que era uma questão de honra, porra! Pelos meus pais, meus avós - e pelos dela também! -, pelos filhos que queria ter e o futuro que sonhava em deixar pra eles, pela vida livre que sempre desejei levar e nunca pude, por essa minha silenciosa e sedenta alma negra aprisionada à margem de tudo, sempre, e pela dela também, que nem fazia ideia do quanto era oprimida, marginalizada e coagida todo santo dia. Antes de bater a porta, fiz a burrice de chamar a Nega de burra. Ela se emputeceu, claro, com toda razão. Ah, se arrependimento matasse...
Eu só queria que ela entendesse, mas ela não entende. Você sabe o que é passar a manhã de domingo inteira, anos e anos a fio, catando xepa na feira, pra ter o que comer durante a semana? Você sabe o que é andar por aí na rua e ver o medo estampado nos olhos das pessoas quando cruzam com os seus? Eles atravessam a rua; elas apertam as bolsas e o passo e abraçam os filhos quando me vêem. Isso é cruel, cara! Já pensei, moleque, em arrancar uma bolsa qualquer de madame, sair correndo e despejar tudo no lixão, sem nem abrir. Só pra justificar o medo e aquilo fazer algum sentido, sei lá, mas nunca tive coragem. Você sabe o que é ter que passar por isso toda vez que pisa o asfalto, só por causa da cor da sua pele? Se sentir diminuído, humilhado, mesmo se estiver com o salário inteiro no bolso? Eu já amaldiçoei esse amarronzado aqui muitas e muitas vezes, mas agora cansei. É justo, não é?
Tô cansado de perder amigos, de sempre ter que consolar quem perdeu alguém. Só essa semana foi tiro em trabalhador, em criança, em avó, tá cheio de militar aqui dentro. Eu tô é muito puto com essas rajadas pelo céu todos os dias, com as correrias inesperadas, com essa sufocante falta de paz, de não poder dormir à noite só porque sou preto e pobre. Eu sou preto e pobre. Não posso esconder minha pele, meu cabelo, não posso fingir ser quem eu não sou, entende? Você sabe o que é viver assim? Ela sabe, a Nega, mas não consegue entender a minha revolta. Ela acha que é assim mesmo, que deus dá o fardo certo e justo pra cada um, que nada na favela vai mudar com manifestação contra a violência aqui ou acolá, que eu tô é fazendo arruaça sem sentido, ao invés de deitar e descansar - todos os dias, às cinco tô de pé. Mas eu não acho nada disso, não. Acredito,
de verdade, que a gente pode mudar muita coisa nesse mundo, sim, se
tiver fé e não desistir no meio do caminho. Mesmo debaixo de bala eu
tinha que estar lá. Mas ela não entende.
Sylvia Araujo