Foto do blog: Mario Lamoglia

domingo, 30 de maio de 2010

Pra ver Mateus feliz

Tela de Portinari

Pra ver Mateus feliz, basta um sonho. De padaria mesmo - doce de leite caseiro escorrendo pela fenda funda açucarada. Seus olhos grandes cintilam com o papel manteiga e a primeira coisa que faz quando recebe o embrulho nas mãos é abri-lo com toda a delicadeza e lamber com gosto o doce grudado na folha branca. A saliva escorre.
Pra ver Mateus feliz, basta um gato. Vira-lata mesmo - uma paleta inteira no pelo curto e um rabo grosso de espanador. Suas mãos pequenas afundam no pescoço magro do bichano dócil e não se sabe ao certo quem é que ronrona baixinho - o acarinhado ou o acarinhador. Seu colo estreito vira cama quente e sua voz pequena cantiga de ninar. O coração aquieta.
Pra ver Mateus feliz, basta uma pipa. Preta e branca mesmo - rabiola farta de jornal de ontem e carretel inteiro de linha vermelho-vivo. Suas pernas finas correm pela rua mansa, braço esticado e boca seca, testa franzida em concentração. Domingo é dia de dançar com o vento. A tarde toda é festa no céu - pintado inteiro, arco-íris alado. O olhar estreita.
Pra ver Mateus feliz, basta uma folha. Caída mesmo - pedaço seco despencado ao chão e carregado das histórias do céu. Seus dedos ágeis imprimem vida ao pedaço morto; um assopro e o marrom dourado se transforma em ave e voa de volta até o alto da árvore. Sua intenção não é que ela renasça, mas que vire ninho - casa de folha pra passarinho. O sorriso dança.
Pra ver Mateus feliz, basta o tudo. Cheio de nada mesmo - pra poder enchê-lo do que quiser. E não cabe carro, nem apartamento porque as asas da sua imaginação ocupam todo o espaço do coração. E o que sobra é mesmo só para o amor, que sempre dá um jeito de se espremer entre uma rosa e um bocado misturado de cor.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Des-ânsia


Amanheceu bonita. Dia quente rompendo no peito, um sol inteiro iluminando afobado a pele fina e clara do rosto. Do outro lado da janela um vento cortante bailando anunciante o longo inverno - em tempos de La Niña não há nada mais a se esperar além das loucuras cometidas pelas estações. Há quem diga que assim enlouquecemos junto. Nada mal quando pensar em loucura é quase como uma abolição da escravatura. No aconchego do lençol macio cheirando à alfazema, sacudiu os pensamentos e esticou as pernas. A cama amolecida pelas noites revelando a marca intacta do corpo rijo entregue aos sonhos. Aquelas tantas lembranças, que - no fim - acabam sempre virando memórias pra dentes. A tatuagem dos amores já cicatrizados na fronha florida já ardeu mais. Hoje revela. E ela sorri confiante, do mesmo lado que tantas vezes foi invadido pelos mares dos olhos. O sal deixou nódoas no tecido amarelo e não há Omo-qualquer-coisa capaz de removê-las. Melhor que fiquem ali, feito foto de obeso emagrecido em porta de geladeira. Pra manter a saúde, tomou por hábito comer os nomes pela manhã. Trinta e três mastigadas e os nutricionistas garantem uma perfeita digestão - é o que dizem. José. Anselmo. Antônio. Lauro. Pedro. Maurício. Renato. Fernando. Sem nenhum líquido gelado entre um e outro pra ajudar a empurrar as dores garganta abaixo - dá barriga, dizem também. Pra evitar que a gastrite vire úlcera, melhor seguir as recomendações médicas. E ainda misturá-las com mel. Essa história de viver azeda já lhe causou transtornos demais. E escassez de poesia. Antes evitar a recaída que deitar todos os dias com os espasmos dos sexos que já lhe fizeram flamejar as curvas. Melhor compreender que o amor é logo ali, e não nas palavras anoitecidas dos dias que despencaram sem vida com o surgir da lua das mortes anunciadas. E deixar-se rodopiar de mãos dadas com o sopro frio que invade a nesga da janela entreaberta, enregelando os amores idos - nunca na espera - mas coração sempre aberto pro que há de vir. Porque borboleta parece flor que o vento tirou pra dançar. E as suas asas - na des-ânsia dos sentimentos - floriram enfim multicores. E estão mais que nunca prontas pra bater. E amar.

Sylvia Araujo




PS: Esse texto nasceu depois de ter lido o verso lindo entregue pela Renata Luciana, num dos tantos delicados posts dela no Estado de Entrega. O link está voando feito florboleta bem ali, no finalzinho das letras. Juntinho com todas as cores do amor - que há sempre de vir.

sábado, 22 de maio de 2010

Azul



Olhou para o céu estarrecida - aquele azulado uniforme acordado inteiro em teto sem trincas, nem uma nuvem sequer para estremecer tanta lonjura e autoconfiança. O azul não tem medo - alguém sugeriu um dia. Não se sabe porque, mas ele nunca tem medo. Sacudiu em espasmos os ombros ossudos ao mesmo tempo em que eriçavam voluntariosos os pelos finos dos antebraços. Aquela brisa constante soprando incessante de dentro pra fora. Aquele gelo nas palmas das mãos. E nas solas dos pés. O corpo inteiro sacolejando horizonte, uma sensação irreprimível de sem fim embalando o estômago mareado. Imensidão sufocante amordaçando a garganta seca. Não caber em si - e ter consciência de sua pequenez interior - fazia o tecido esticar até o limite. Limiar inconteste é a linha tênue entre o prazer e a dor de ser em si. E nada além. Sentiu um a um cada poro rompendo, explodindo em eufórica libertação. Inspirando profundo a magnitude daquele instante - peito transbordando - expirava medo. Escapava-lhe das narinas o sopro quente do pavor. O que fazer, meu deus, com tanto azul? E aquela infinitude toda que sempre que se faz presente, lhe arranca pedaços com os dentes afiados e lhe deixa buracos enormes no peito? Não cabe. Ela sente que não cabe tanto destemor, tanto azulado destemor no seu coração cinza. Duro e cinza. Medroso e muito, muito cinza. Aquela cor maldita, aquele matiz de beleza tão singular e íntegra invadindo assim seus olhos negros e encharcando de música inteiro o frágil corpo-invólucro. Cansou de vazar. Exauriu de escorrer. Então, num ímpeto desesperado de matá-lo, extinguí-lo para que pudesse viver enfim em paz alimentando de nãos seus dias - como todos os dias - cravou enérgica a cintilante tesoura dourada afiada bem no meio do arco da íris opaca. E no exato momento em que tudo perdeu a cor, suspirou profundo e sorriu de lado. Desde aquele fatídico dia, o tão imaculado e imenso azul inteiro, que tantas vezes lhe tirou o sono, dormiu. Enegrecido e vencido, sucumbiu.

Sylvia Araujo




PS: Note alheio sequestrado = texto novo. rs

terça-feira, 18 de maio de 2010

Camisolenta *

Ando camisolenta,
arrastando as sandálias pelos dias.

Ando neblina densa;
ando rotina dura;
ando vazio esparso
- laço desfeito,
gasto.
Ando, por aí, sem rumo,
desencontrando os passos.

(Ando camisolenta,
afastando os dias pelas sandálias)

Sylvia Araujo




* Mais uma republicação, para o blog não ficar abandonado por muito tempo - mais ainda do que já está. O computador ainda está no conserto. É provável que eu consiga publicar letras novas por aqui antes do final de semana. Ou não. Até lá, ando-andando-me-arrastando camisolentíssima. Mas passa. Deve ser a abstinência dos verbos, ou dos advérbios, vai saber...

Beijocasmuitas

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Queridos, estou novamente sem computador. Por algum motivo que ainda não descobri, a peça que foi trocada queimou de novo. Vou ficar um pouco mais ausente, aparecendo por aqui no tempinho em que conseguir ir até uma lan house - quase nenhum. rs Quando voltar, beijo cada um com o carinho que merecem. Prometo.

Beijocas

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Degradação *

A criatura já virou estátua, múmia ou qualquer coisa que não se mova sem vento. Parece que brotou lá, no âmago do boteco mais imundo que já vi na vida, surgindo soberba do meio das engulhantes poças de cerveja-insone e suor-mal-cheiroso. Com cabelos em pleno incêndio, entupidos de laquê endurecido, despenteados com todo o zelo pro alto, mas bem pro alto mesmo, ela nem pisca. Olha adiante, embora me pareça amordaçar o passado a todo instante. Ela grita sem emitir um único som. Não sei como ou quando se aninha, nem em que condições vai embora, mas é certo de que ofusca os olhos de quem passa a qualquer hora, estupidificada que se faz por paetês, balangandãs e cintilantes afins, pleno sol à pino. Dos pés à cabeça ela reflete. É tanta ruga, mas tanta ruga, que a maquiagem pesada faz crosta no meio dos sulcos. E o batom, nem precisava dizer, corre confuso pelos tons de vermelho: sangue, cereja, morango, chaga aberta. Isso, quando não se faz perceber camadas sobrepostas de todos eles juntos - uma cicatriz sentada na outra. Tem sempre uma cerveja aberta, já reparei, um copo cheio e uma companhia - que nem sabe seu nome e está sempre de costas. Nem deve ter nome. Sequer ser chamada. Tampouco parece respirar, ou sorrir, ou chorar. Toda vez que passo por sua mesa cativa, meu coração procura por ela. E ela está invariavelmente lá, implacável, em seu mundo distante. Em um mundo próprio de brilhos e sonhos.
Toda vez que passo por ela, ela vai embora comigo.
Toda vez que passo por ela, ela se deixa levar.
Pra qualquer lugar.

Sylvia Araujo






* Esse texto já foi publicado há quase um ano, mas como nunca mais vi essa mulher e ainda assim ela continua a latejar em mim, resolvi dividi-lo com vocês mais uma vez.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Hoje é dia


Hoje é dia de beijar o sol que açoita inquieto a janela da alma - seus dedos quentes de raio me arranhando sutil a pele arredia. Um gosto de verão aflorando primaveras no céu estrelado da boca. Dentes de leão me brotando delicados pelo nariz; asas nos pés pra levitar além. Hoje é um dia bom pra lamber a música que escorre do chuveiro quente - e derramar junto. Mastigar demorado a melodia que suspira na água fervente da chaleira. Dançar com as notas sem compasso que tilintam no molhe de chaves - três pra lá, cinco pra cá, mais um bocado de variações inconstantes. Quem me espreita a sonhar assim imagina que deve haver algo de especial nessa segunda feira branca de maio. Se não muito, apenas um susto de especialidade. Mas não. Hoje é mesmo um dia como outro qualquer. E talvez por ele ser assim, igualzinho a todos os outros, é que se me criou essa necessidade incontrolável de me permitir ser invadida. Tocada, violada. De ter um dia inteiro rotineiro, digerindo bem dentro do estômago, pra que tudo o que nele habita me alimente as células famintas do corpo - e me faça vida ensolarada. Assim, ansio que o hoje me vista com o cheiro doce do plástico bolha que embala as horas - maneira poética de tê-las tiquetaqueando aqui dentro. Desejo mais: que me invada o gosto acre de toda a minha melancolia, pra que eu possa adocicá-lo com a maciez das frutas que nascem em terras onde eu nunca pisei. Espero ainda paciente que brotem em meus olhos, vigorosas, todas as flores multicores que chovem das árvores no outono. E que me seduzam os amores. Ah, os amores - todos eles, cada um deles em mim. Que o mar me tome inteira pelos ouvidos - colados em uma concha qualquer. E da lua, peço apenas que me entupa das suas fases, pra que eu aprenda a me entregar suave ao minguar, antes de crescer e brilhar, e brilhar mais ainda. Eu quero tanto, e tanto mais, porque descobri - olha só, que maravilha - que o hoje é o meu caminho. Me dei conta dia desses, olhando um casal de velhinhos de mãos dadas pela rua, que o laço de fita quem põe na vida sou eu. E é por esse pouco tão muito que decidi que agora onde eu vou, vou pra ser estrela. E levo na mala comigo cada minuto fantástico que borbulha. Além do miar de um gato, um kiwi maduro e um coração feliz. 

Sylvia Araujo





PS: Voltei! :)
Beijocas floridas.