sábado, fevereiro 28, 2015

um doce refrigério

«Chorava em fonte, e as suas lágrimas punham no fogo rijo das duas horas um doce refrigério de orvalhada.»

Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)

LOGUNEDÉ



o anúncio da morte

«E de novo senti a dor, a mesma dor, aquela que, como uma fiel irmã ou um velho amigo, nunca desde então mais me largou.»

Sérgio Luís de Carvalho, Anno Domini 1348 (1990)

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

emigrantes

«Alguém transporta ao colo uma criança, que pelo silêncio portuguesa deve ser, não se lembrou de perguntar onde está, ou avisaram-na antes, quando, para adormecer depressa no beliche abafado, lhe prometeram uma cidade bonita e um viver feliz, outro conto de encantar, que a estes não correram bem os trabalhos de emigração.»

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

quarta-feira, fevereiro 25, 2015

BALLAD OF HOLLIS BROWN



no escuro da noite

«Avizinhavam-se da estação; cruzaram uma sentinela, de baioneta calada, à porta dum quartel; por detrás da grade uivava um cão. A noite cerrava-se de todo, noite calma, límpida e estrelada do Outono peninsular. Para trás, imersa no escuro da noite, escondida nas voltas da estrada, ficara a mole imensa da fortaleza, cujo vulto, sempre presente afinal nos seus espíritos, os perseguia como se dele não se houvessem afastado.»

Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938)

terça-feira, fevereiro 24, 2015

mulheres muçulmanas com vestidos ousados

Não sei quem foram os costureiros, as passerelles situam-se na Síria e no Iraque -- ou melhor, no Curdistão -- e os desfiles a qualquer hora do dia ou da noite.
Também desejam a paz no mundo, mas enquanto ela não é possível exercitam-se no "Tiro ao Energúmeno", espécie com riscos de tornar-se praga, também conhecida por fundamentalista islâmico (talvez a PETA desaprove, nada é perfeito...)




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o asseio dos Brocas

«Fernão Botelho, pai do juiz-de-fora, saiu à frente do préstito para dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois, que os fidalgos de Vila Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa.»

Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (1862)

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

The Tights, «China's Eternal»

o Syriza entre os lacaios da Alemanha e a esquerda cro-magnon

A precipitação, a ânsia de ser o primeiro a opinar e mostrar que a razão estava do seu lado, tem trazido a terreiro alguns críticos do Syriza, à direita e à esquerda. Uns porque defensores e/ou coniventes com o governo português; outros porque queriam para a Grécia  a Revolução, a puta da Revolução.
Na verdade, não se trata de opinião séria, mas uma tentativa de justificar ou um percurso pessoal (os serventuários do Governo português) ou puxar pelos galões os corifeus da pureza ideológica.
(Neste aspecto, como já li algures, honra seja ao PCP, que não foi pelo caminho mais fácil.) 
É tal o afã, que aquilo que efectivamente a Grécia já ganhou, fazendo política e tendo vergonha na cara, é convenientemente silenciado por estes altifalantes de carne e osso. Esperar para ver quais são as medidas que o Syriza vai apresentar no Eurogrupo, é coisa que não interessa nada. O que importa é, para os comprometidos com o governo português, tentar sacudir a aguinha do capote e ufanar-se por alegadamente não haver alternativa às políticas assassinas que foram aplicadas nos últimos anos; do lado da esquerda cro-magnon e palerma, importa invectivar os novos governantes gregos pela postura firme de compromisso.
E que tal terem calma, foda-se?...
Cansaço, extremo cansaço.

domingo, fevereiro 22, 2015

4+20



entretanto em Oslo

Muçulmanos noruegueses recusam a instrumentalização, a menorização individual, a condição bovina de muitos dos seus (alegadamente) irmãos em fé e fazem um cordão humano para defesa simbólica da sinagoga da capital. Uma bravíssima jovem islâmica (sim, porque até na Noruega é preciso coragem para se chegar à frente...), sem véu, discursa aos circunstantes, afirmando orgulhosamente a sua pertença à Humanidade, da qual se autoexcluíram uns zombies que degolam e se fazem explodir, e as criaturas perversas que os manipulam.
Assim sim, os muçulmanos europeus não só merecem todo o respeito como se tornam credores dele.

Tom Fogerty, «Beauty Is Under The Skin»

sèrgiofilia mórbida

«Quando pronunciava a palavra "razão", quase desfalecia, num esvaziar-se de si próprio, muito próximo de um orgasmo.»

Eugénio Lisboa, Acta Est Fabula -- Memórias III

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

AISHA



mandar tudo à fava

«"Bem sei o que tu quererias, fedelho -- monologava por sua vez o pai. -- Quererias ir para a cidade tirar um curso de profissão superior, e mandares pobreza, mineiros, injustiça e tudo à fava. Mais tarde amparares um velho de que já não precisarão na Mina... nem em parte nenhuma."»

José Marmelo e Silva, Adolescente Agrilhoado (1948)

quinta-feira, fevereiro 19, 2015

CALDONIA



Tsipras: os que se erguem e os que se vergam

Ontem, Tsipras dizia a Shaüble, no parlamento grego, que não devia ter pena dos que se erguem (os gregos), mas dos que se vergam (ele não disse quem, mas a carapuça era para nós). Schaüble respondeu hoje, exibindo uma ministra das finanças de Portugal que faz tudo como a Alemanha gosta, e manda. Que vergonha, que vergonha...
Entretanto, Cavaco volta a puxar do porta-moedas e mostra como nós temos ajudado tanto os gregos. Miséria, miséria...

quarta-feira, fevereiro 18, 2015

ANNIE'S SONG



a besta quadrada do senhor doutor

«Lembro-me muito bem da chegada dessa besta quadrada do senhor doutor Oliveira Salazar e da Amália cantando o Carlos Gardel.»

Manuel da Silva Ramos, Adeusamália (1999)

Anna von Hausswolff, «Mountains Crave»

terça-feira, fevereiro 17, 2015

carregadas como carros

«Em baixo, duas lojas: a corte, para criar o reco; a outra, para guardar a lenha, molhos de tojo, torgas e urgueiras, comprados às mulheres do povo, que, pouco depois da meia-noite,subiam aos quintos da serra, com o cutelo à cinta, as cordas e a sachola ao ombro, e regressavam, carregadas como carros, a um terço da manhã.»

Guedes de Amorim, Aldeia das Águias (1939)

Supersuckers, «Something About You»

segunda-feira, fevereiro 16, 2015

Somos todos Judeus!

E, na realidade, até somos muitos de origem judaica / cristã-nova. Portugal é, felizmente, o país mais miscigenado da Europa Ocidental: celtas, latinos, hebreus, germânicos e berberes -- só para mencionar os mais notórios ao longo dos dois milénios em que se escreveu a história deste território do extremo-ocidente europeu.
Portugal não foi o primeiro dos países na lista dos crimes contra a gente de nação. Esse triste galardão cabe à Inglaterra desse bandido chamado Ricardo Coração-de-Leão. Mas contribuímos larga e decisivamente para o opróbrio, com a expulsão no final do século XV, com as consequências nefastas que se sabem (esta terra foi sempre muito mal governada...)
Com este cadastro, de que tardámos a redimir-nos (à vergonha que foi a acção de Salazar para com os judeus portugueses na Holanda ou na Grécia, temos a nosso favor não apenas Aristides de Sousa Mendes, mas também Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho); com este cadastro temos o dever enquanto país de  estar na primeira linha da comunidade internacional contra a vaga de atentados perpetrados pelos islamo-fascistas.
Nós e o resto da Europa, até para não deixarmos pasto para o criminoso Netanyahu, que, desde os ataques ao Charlie Hebdo, tem estado a manipular a tragédia para a sua estratégia suicida em Israel.
Eu sei que isto é esperar demasiado de um Governo sem política externa; mas um país não se faz só daqueles que transitoriamente o dirigem. 

uma comoção galvânica

«Ao ver assim de improviso, diante de si, o cobiçado, o imprescindível licor, o derreado tanoeiro aprumou-se, mordido duma comoção galvânica. Logo as mãos avançaram a tactear a garrafa, numa desconfiança, enquanto os olhos se lhe esbugalhavam, muito secos do prazer, os olhos, e com a língua a crescer dentro dos beiços ávidos, mal conseguia entaramelar:»

Abel Botelho, Amanhã (1901)

quinta-feira, fevereiro 12, 2015

Que me importa, agora que me importas, / que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco

BLANK GENERATION



quarta-feira, fevereiro 11, 2015

esfeiar Luarmina

«Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos.»

Mia Couto, Mar Me Quer (2000)

BADGE



terça-feira, fevereiro 10, 2015

o leitor preferido

«O leitor que prefiro é aquele que, em bom português do Brasil, dirá: "Me engana que eu gosto".»

Carlos Ceia, O Professor Sentado (2004)

Robert Plant, «Turn It Up»

segunda-feira, fevereiro 09, 2015

do frio português

«Em todo o nosso país, desde Castro Laboreiro aos Montes do Guadiana, se rapa, periodicamente, muitíssimo frio, suportado estoicamente, à custa de muita esfregação das unhas, muitos goles de aguardente e uma cifra astronómica de nacos de toucinho e caldos de unto.»

Sant'Ana Dionísio, Ares de Trás-os-Montes (1977)

domingo, fevereiro 08, 2015

Najla Shami, «Camiño Branco»

que se foda o Corão?

Que se foda o Corão? Sim, claro, com esta ressalva: que se foda o Corão que anda no meio da rua a chatear. Que se foda a Bíblia e que se foda a Tora. Religiões, nos templos. Nada tenho contra quem crê, seja em deuses seja no Pai Natal. É da liberdade individual de cada um, e o meu individualismo é extremo e total. Fora das igrejas, das mesquitas, das sinagogas, são inimigos públicos que não podem (não é "não devem", é "não podem") ser tolerados.
Tenho enorme admiração pela coragem de Aliaa Magda Elmahdy, que mesmo no exílio continua a arriscar a vida por um mundo menos grotesco, mais livre, mais higiénico.


QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR, de Ana Margarida de Carvalho

Romance de estreia, não parecendo tal, tal é o domínio da técnica romanesca demonstrado. Piscadelas de olho ao leitor, mais ou menos dissimuladas, um encorpado volume de referências literárias. personagens que ficam na memória -- que mais se pode pedir a um romance? Sem espanto, a atribuição do Grande Prémio de Romance e Novela da APE/2014.

sete palmos dela

«Rogávamos-Lhe o céu, ambicionávamos-Lhe a terra. Não a leveza dela em cima de caixão, que esses póstumos torrões não aconchegam, mas afrontam quem nunca teve terra em vida à mão de semear, e agora conquistava sete palmos dela, abençoada, quando os dedos gélidos e descarnados repousavam, entrelaçados, sobre o peito. Inúteis até para arrancar raízes. Tanta terra no mundo para morrer, tão pouca para viver.»

Ana Margarida de Carvalho, Que Importa a Fúria do Mar (2013)

sábado, fevereiro 07, 2015

AS YET UNTITLED



a descoberta do valor das palavras

«No fim de contas as palavras não serviam apenas para meter na ordem gaiatos descompostos, insultar as vizinhas linguareiras da cave ou adormecer com canções o ranho dos miúdos. Dispostas de certa maneira adquiriam outro significado, exprimiam sentimentos e valores que os homens só daquela forma se atreviam a desabafar em voz alta com cerimonial de ritmos pautados.»

José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras I ou o Gosto de Falar de Mim (1965)

quinta-feira, fevereiro 05, 2015

O BARCO VAI DE SAÍDA



largar fogo ao tigre de papel

Será irónico se for a Jordânia, o país militarmente mais débil da região, a contribuir decisivamente, com tropas no terreno, a aniquilar o Daash (Estado Islâmico) -- organização selvática e fanatizada, mas sem nenhuma hipótese contra um exército regular a sério (não me refiro à tropa de caricatura do Iraque pós-invaso americana). Aliás, os mal equipados e extremamente eficazes curdos têm demonstrado que tirando a selvajaria e o fanatismo, não sobra nada àqueles animais...
Como já escrevi, quando os telejornais ampliavam acriticamente a propaganda do Estado Islâmico, o exército turco varreria aquilo em poucas semanas. O problema é, e será sempre, a população civil, que aqueles ratos não hesitarão em seviciar como reféns. Mesmo assim, a superioridade de competências da chamadas forças especiais é tal, que a minimização de danos pode ser sempre equacionada. (Isto, não querendo que as forças regulares se comportem à russa, como quando Putin arrasou a Tchtcénia sem apelo. Seria uma limpeza, mas uma limpeza macabra e criminosa; e para delinquência, já basta a do Daash.).

era noite

«Trazia ainda no corpo a roupa ruça do sol, na pele a luz ocre da terra, trazia no rosto um sorriso reverente.»

José Luís Peixoto, Nenhum Olhar (2000)

terça-feira, fevereiro 03, 2015

da identidade nacional

«E era esta a abordagem mais recente do problema, porque a mais antiga talvez fosse a transcrita nas 'Chroncias dos Senhores Reis de Portugal', de Christovão Rodrigues Acenheiro, sim, a edição da Academia diz mesmo diplomaticamente 'Chroncias', e de repente, quando reflectina no que o Mattoso dizia, dei-me conta de que já o D. Afonso IV procurava, no seu modo brusco e medieval, circunscrever por inteiro a identidade nacional, quando escrevia brutalmente ao rei de Castela, seu genro: 'E sem dúvida sabei que os Portugueses nunca deixaram de usar três cousas, a saber, lutar, pelejar com Castelhanos , e demandar com boa vontade mulheres.'.»

Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda (1988)

exactamente

Para quem não tem noção do significado do que se passa na Ucrânia e se alimenta da 'informação' para analfabetos dos telejornais das três estações, é sempre bom, para variar, ler quem sabe do que fala.

Hiss Golden Messenger, «Southern Grammar»

pessoa não única

«Parecia habitá-lo uma pessoa não única ou coordenada, mas feita das sucessivas aparências de cada circunstância.»

Vergílio Ferreira, Aparição (1959)

domingo, fevereiro 01, 2015

HEAVENLY POP IT



zootecnia

«O Açor parecia realmente despido da sua pele de cão de guarda, de olhos espantados e fitos naquele par misteriosamente formado, com uma trepidação nas beiçanas pendentes, escorridas de baba. [...] E se conservava um resto de gana no lombo e no focinho anelante, traduzida num rosnar que o vento levava em dueto, é que há sempre intervalo entre um corte de corrente e o parar do motor.»

Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal (1944)