A a Z

segunda-feira, março 31, 2008

As casas à beira do lago

Nas casas à beira do lago, pode
pensar-se que o tempo não passa. A água reflecte
o céu parado do verão, e um grasnar
de aves ecoa até à outra margem, como se
o mundo não existisse para além das árvores
e das casas.

Nas casas à beira do lago, não se abrem
as janelas para impedir que os mosquitos entrem,
e que os sonhos saiam. Uma cadeira de balouço
insiste em ficar parada, como o céu do verão,
para que nenhum movimento atravesse
a vida que ali ficou.

Nas casas à beira do lago, contam-se
os dias que faltam para que a água se encrespe,
com o vento do outono, e não se abrem as portas
para que as sombras não fujam para os campos,
onde os ladrões as roubam, deixando sem sombra
quem vive nas casas à beira do lago.

sexta-feira, março 28, 2008

A técnica do quadrado

São quatro os ângulos deste soneto,
que levo de uma a outra margem:
sem rima nem metro, balança in-
deciso entre folhas e nenúfares.

Com os remos do verso faço
avançar o barco da estrofe; e
quando chego a meio da imagem,
todos os reflexos se apagam.

Podes então pegar num terceto
e usá-lo, como um leque, para
que a respiração volte ao seu ritmo.

E se não souberes o que fazer
do fim, volta ao princípio e ouve,
no silêncio, a música das rãs.

domingo, março 23, 2008

Mar


No inverno, as praias desertas enchem-se de espuma
e de gaivotas. Ouço o rebentar das ondas contra a falésia;
e respiro o ar salgado com a impressão luminosa
da manhã. À noite, esta imagem transforma-se
numa simples memória: e colo-a ao vidro da alma
para não me esquecer do que vi, sabendo que um
dia a poderei usar, no poema, onde o mar se irá
transformar nesta imagem que guardei, numa
manhã de inverno.
Porém, não ouço no fundo das palavras
a rebentação da maré; nem respiro, por entre
os versos, o frio húmido de um litoral onde aprendi
as cores exactas da manhã. O poema não passa de
um mapa onde acompanho, na linha dos substantivos,
a corrente do mundo, e imagino, na mancha
de cada adjectivo, a forma das paisagens. E desfolho
as estrofes numa viagem abstracta, em busca
das grandes praias da vida.
Mas o mar continua colado ao vidro
da minha alma, embaciando o que escrevo
com o seu ritmo matinal.

sexta-feira, março 21, 2008

Tempo

Como se tivesse todo o tempo, não
se lembra do tempo que foi, nem pensa no que
há-de vir. O tempo é a mesa vazia onde
nada cabe, como se estivesse cheia; e
entre passado e futuro as sombras
alargam-se pelo chão, desenhando
a escadaria por onde desceu, até
hoje, numa incerteza de passos
infalíveis.

terça-feira, março 18, 2008

Rotina


Ao pentear-se, com o sol
a entrar pela janela, perguntava
a si própria se era a mesma de ontem,
como se houvesse
alguma lógica na relação entre a luz
e o pensamento que nascia do seu gesto. Mas
o que a manhã trazia era um sentimento
que interrompia o passar
dos minutos, e a levava a descobrir
que a vida pode ser um parêntesis
entre uma hora e outra. E quando
se olhava ao espelho, o tempo
voltava a passar no mostrador do relógio,
com o ponteiro a correr no sentido inverso,
trazendo-a de volta a um hoje
em que amanhã é o mesmo
dia de ontem.

segunda-feira, março 17, 2008

Eterno retorno


No campo, são as mesmas árvores; no
céu, são as mesmas nuvens. Outras árvores
caíram, outras nuvens passaram; mas
o campo é o mesmo, e o céu não
mudou. A sua natureza é esta: permanecer
dentro da própria mudança.
O homem que aqui esteve, porém, já
não é o mesmo. Quando olha para as árvores
que mudaram a folha, e para o céu onde
as nuvens sucedem às nuvens, não se
reconhece. O tempo do homem não se
renova, nem a natureza lhe ensina
como ser o mesmo quando tudo muda.
Por isso, o homem deita as árvores
abaixo, não olha para o céu, e anda em
frente como se o campo lhe pertencesse,
e não às aves que se abrigam entre
as folhas. O tempo do homem é não saber
do tempo, nem ouvir o canto das aves que
pertence a este céu que já não existe.

sábado, março 08, 2008

Manhã no porto

Nas grandes esplanadas em frente do mar,
as mesas enchem-se com as frases monótonas
da manhã. Os barcos, ao longe, levam os sonhos
de quem conversa para além do horizonte;
e só ficam em terra as palavras que se deixam
de gorjeta às empregadas que esperam que
as chamem, como se alguém quisesse repetir
o café. E se o vento faz voar os chapéus
num círculo de flores, os homens correm
atrás deles, confundindo-os com as gaivotas
que esperam o regresso da pesca, para
apanhar o peixe que saltou das redes.

terça-feira, março 04, 2008

Natureza morta com paradoxos

Se tivesse um copo para encher,
dá-lo-ia ao verso que se estende pela sede de o beber.

Se tivesse uma faca para abrir a romã,
trocá-la-ia pela serpente que preferiu a maçã.

Se tivesse um vaso onde plantar as flores,
enchê-lo-ia com a terra que o céu vestiu com as suas cores.

Assim, poderia beber-se o poema
pelo copo do verso,

cortar a fruta
com a lâmina da serpente

e pisar o céu
à luz da terra.