A a Z

quarta-feira, maio 31, 2006

Distância


Entro no teu quarto, como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. «Não te levantes, digo,
e deixa que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada.» Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

terça-feira, maio 30, 2006

Ninfa apanhada no bosque

Auguste Renoir

Por que se despe? Ou por
que se veste? Entre um e outro
movimento, é o corpo que
se oferece. A quem? Para
quê? Não se sabe quem
a merece: fauno à deriva
em campos sem ninguém,
ou amante perdido
à sua mercê. É para ti
que ela olha? Ou para
mim, que a pinto? No seu
pedaço de campo, talvez
me acolha; e se disser
que não a quero, minto.

segunda-feira, maio 29, 2006

Trânsito


Ao voltar a casa, com o rádio do carro
aberto, lembrei-me de ti, com o cabelo apanhado,
o alfinete de dama a prender-te o vestido,
que podia ser uma farda, e o teu rosto
dividido: de um lado, a luz da vida,
do outro, a obscuridade que o flash do
fotógrafo não conseguiu resolver. Posso
dizer-te que amo os teus olhos, e que
muitas vezes os atravessei para descobrir
o outro lado da alma, onde se esconde
o que os teus lábios não revelam. Um
dia, porém, perguntar-te-ei: quem és?
E talvez saias da sombra, abrindo-me
um sorriso que me empurrará para
a outra margem que não conheço. Servir-me-ás
de guia? Ou voltarás para o teu canto,
desapertando o alfinete de dama que
sempre te incomodou. O rádio do carro
continua aberto, com as notícias do dia;
mas o que quero saber é o que tens
para me contar, e o tempo apagou.

Pausa


Sentada, de costas para mim, olhas
esse ponto em que todos os sonhos
se concentram; e a serenidade envolve-te
com o seu lençol efémero, para que
não penses em mais nada.

Elisabeth Siddal


Escrevo o que vejo, mas também
vejo o que escrevo. E no teu rosto,
o que vejo são as palavras que
nascem dos teus olhos, quando
os abres, e toda a luz do mundo
desce pelo teu rosto, dizendo
que é manhã. Por isso as escrevo,
para que a manhã possa nascer
deste poema, através das palavras
que o teu rosto me ensina.

Regresso do baile

Alfred Roll

Falo de poesia pura, como se de pura
abstracção estivessem a tratar as mãos
que despem este corpo. E quando passo de um verso
a outro, sabendo que a imagem vai nascendo
deste movimento em que as palavras
dançam na página, limito-me a seguir
os dedos que abrem botão após
botão, e desfazem laço
após laço, até descobrirem o que
sabíamos que existia, sem nunca o ter visto:
o belo, na sua exacta proporção.

No centro do quadro, onde uma janela
se abre para o que é, talvez, uma paisagem,
o olhar distrai-se do significado que
o gesto constrói. E quem passa o limite,
e se confronta com a sombra, perde
a possibilidade de um regresso a este
instante luminoso, em que num simples
eco a música da noite se concentra,
enchendo os ouvidos que se habituaram
ao silêncio.

Por isso, espero que o trabalho
chegue ao fim, para que a mulher se volte,
e dê à dança o argumento
da sua nudez.

domingo, maio 28, 2006

Odalisca


Contam que se entrega aos ventos favoráveis
do amor. Estátua de mármores nocturnos,
assistiu a uma debandada de desejos
na pele dos amantes. No olhar calcinado
pela espera, derrama-se o fogo já frio
das vésperas inúteis. Para que lhe servem os braços,
agora que todos partiram, e só uma corrente
de silêncio a prende ao leito?

No entanto, deito-me com ela. Um degelo
de pálpebras limpa-nos de uma cinza
de solidão. E diz-me: «Quero perder-me
numa encruzilhada de abraços; afogar-me
num poço de gemidos; esquecer-me de mim
no fundo da tua memória.» Deixo-a
entregue a si própria; e pergunto o que fazer
do calor dos seus lábios, da ânsia
que os seus dedos soltam, do tempo
que estremece no seu corpo?

quinta-feira, maio 25, 2006

À maneira de Eurídice

P. C. Beaufaux

Folha que passou num antigo outono,
deixa atrás dela o que não se vê:
a direcção do olhar para um canto
de parede, onde um espelho a
reflecte. E vejo estes olhos
falarem, para que outros
olhos os desviem da imagem
defunta. Mas quando o meu olhar
se cruza com o seu, o reflexo
dissipa-se, como fumo de incenso;
e onde havia imagem e vida, só
um resto de pó ainda brilha,
no vidro, para que alguém o limpe,
e outro rosto apareça.

Acordar

Girolamo Induno (1827-1890)

Um pássaro canta de fora da janela;
o sol da manhã despeja a sua luz
sobre o campo. Ela ocupa-se em nada,
como a libélula que procura
os filamentos de brilho na água
do charco. E a vida declina
na oblíqua sonolência dos seus olhos.

quarta-feira, maio 24, 2006

A arte da melancolia

Heinrich Maria Hess (1798-1863)

O olhar desloca-se para as rosas que estão
em primeiro plano, como se tivessem sido acabadas
de colher. A mulher, porém, tem outras
flores na mão; e obriga-nos a hesitar entre o pote
de onde nascem as rosas e o colo em que pousam
as flores. Trata-se de uma hesitação breve,
porque logo o seu rosto leva-nos a divagar
acerca da paisagem. Vemo-la ao fundo,
num semicírculo que tem a forma perfeita
do seio que o vestido esconde, e se poderia
confundir com uma visão do paraíso se
a mulher nos aparecesse como um anjo. Mas
não tem asas; e o seu corpo empurra para
longe a transcendência, mesmo que o seu rosto
se perca numa vaga tristeza que as flores
caídas acentuam. No entanto, se em vez desse
mórbido acento me fixar no brilho das primeiras
rosas, posso transferir a cor das pétalas
para cada uma das faces, e ela levantar-se-á
com uma pose de anjo, transformando
a paisagem, ao fundo, na imagem do paraíso.

A caminho da feira

Claude Bonnefond

Deito à sorte a sorte que se abre
nas mãos da cigana que lê as cartas
como se fizesse um comércio de destinos.
Pergunto-lhe quanto pode custar
um amanhã que seja igual a ontem;
e ela fala-me das sinas impopulares,
dando-me o tempo que eu quiser como
simples troféu para meter no bolso (e
perder na primeira esquina). Por baixo dela,
as sombras escondem-se; e eu próprio
procuro a minha nos folhos da sua saia,
para onde caem todos os fantasmas que
saltam dos seus olhos. Mas a música
trazida pelo vento começa a inquietá-la;
e espera que passe a carroça que a há-de
levar à feira, onde os homens se irão
juntar à sua volta. «Diz-me o que vou ser»,
perguntam; ou então: «Será este um dia bom
para os negócios?» Ela não abre a boca, e
tira das cartas todas as respostas que eles
pedem, enquanto não pedem a sua boca.

terça-feira, maio 23, 2006

O vergel (variante: Proserpina)


É na terra que se encontra a matéria do poema,
sob estes dedos que afastam pedras e ramos para chegar
à raiz das coisas, mesmo que um carreiro de formigas
se meta pelo meio, ou ervas mortas saltem de dentro
de torrões. Ao fundo, onde as amigas conversam
de assuntos da vida, e uma lembrança de cidade rompe
o hímen da natureza, o céu fecha a estrofe; e
não é preciso procurar um rasto de avião por entre
as nuvens para saber que o horizonte não existe,
ou que a terra é tão redonda como este fruto
que a mulher colhe, com os olhos, ao pensar que o seu corpo
se poderia transformar em árvore. Neste inverno,
porém, limita-se a examinar os caminhos de deus,
que se metem pela terra, como a água da chuva; e desejaria
segui-los, até ao mais fundo dos subterrâneos,
oferecendo o ventre a uma gestação de primavera. As amigas,
porém chamam por ela; e lembram-lhe que o seu lugar
não é entre os mortos, mas nesse ângulo que toca
a luz nascente, onde ela vê a primeira paisagem
do dia, e as modificações que se fazem no mundo quando
sacode as mãos, e regressa à vida.

segunda-feira, maio 22, 2006

Debaixo das bétulas

Albert Edelfelt

Na hora amarela do bosque, apanham
flores, passando o tempo. Esperam-nas
em casa; mas elas não pensam nisso,
falando uma com a outra, e sabendo que
o almoço pode esperar, enquanto enchem
os bolsos de pétalas perdidas. Um pássaro, com a
melancolia do fim da tarde, começa a cantar; e
elas nem o ouvem, entretidas com a primavera
que nasce debaixo delas, e que insistem em
apanhar, para a levarem para casa. «A mesa
vai ficar bonita com estas flores.» Oh, as
suas vozes enchendo o campo! Dir-se-ia uma
cena de ninfas, só faltando os faunos para
lhes saltarem às costas, obrigando-as a
esvaziar os bolsos, e a devolverem à terra
as suas flores. Mas os passos que ouviram
dissipam-se na distância; e impõem uma
à outra o silêncio, para que se cansem
de as esperar e se vão embora, e em casa
deixem de pensar nelas, como se já não fossem
deste mundo. «Que importa?», pensam. E a noite
cai, sem que dêem por nada.

Matisse e a odalisca


Com o caderno na mão, desenha os esboços
que me lembram um almoço de couscous,
há uns anos, com um equilibrista pelo meio. No entanto,
os desenhos tinham a luz do norte de África, muito
diferente da luz de Paris onde estava a exposição;
e se um barco atravessava a esfera de alcance
da minha vista, é porque estávamos na primavera,
e já havia turistas no Sena, a espreitarem o instituto
do mundo árabe com as suas janelas necrológicas,
que deviam rodar como a chave na fechadura
para que a luz não pudesse entrar, no verão, ou entrasse
completamente, no Inverno (o mecanismo é que não
funciona, fica só a intenção). Mas no meio dos dedos
de Matisse, o que navega é o corpo da odalisca que
ele tira do leito para lhe dar um movimento de dança,
como o que fazia o equilibrista, entre as mesas,
distraindo os comedores de couscous. Por causa disso,
não acabei o prato, vendo o barco que atravessava o Sena
entrar pelos olhos da odalisca, e sair do outro lado
da mesa, onde Matisse tinha pousado o caderno
para me perguntar se sabia dela, que fugira
do quarto à frente de um barco, e fora apanhada
pelo equilibrista que, num passe de mágica, a metera
na sua manga, para a levar de volta ao divã.

Olhando-se


O espelho enche-se com a tua
imagem; e queria tirá-lo da tua
mão, e levá-lo comigo, para
que o teu rosto me acompanhe
onde quer que eu vá.

Mas sem ti, o espelho
fica vazio; e ao olhá-lo, vejo
apenas o lugar onde estiveste, e
os olhos que os meus olhos procuram
quando não sei onde estás.

Por que não fechas os olhos
para que o espelho te prenda, e
outros olhos te possam guardar,
para sempre, sem que tenham de olhar,
no espelho, o rosto que eu procuro?

Mulher com chapéu de chuva

Maillol

O que é certo é que as linhas que os Mestres
ousaram, anos e séculos a fio, pouco
mudaram, mesmo quando o seu caminho
foi diverso, e diversas as mulheres que
os inspiraram. Há uma procura
da perfeição que surge, num ou noutro
momento, e neste ou naquele rosto,
quando a imagem se define. Por vezes,
porém, há sinais de indecisão, ou uma
simples dúvida no encaminhar da mão
para aqui ou para ali. Logo, porém,
as coisas retomam o seu curso; e nesta
figura de jovem, junto ao mar, num
dia de sol, todas as interrogações
têm uma resposta. Não sei o que ela
pretende quando a sua mão segura
o chapéu: pode estar a ver alguém
que se aproxima, ou apenas a segurá-lo,
nesse dia em que o vento sopra com
força. A outra mão, porém, apoia-se
ao chapéu de chuva, que ela usa naquele
dia para se proteger do sol, embora não
se saiba para que precisa ela de um
chapéu na cabeça e outro na mão. Ou
será isto um resultado da angústia
de quem a viu, e pretendeu retratá-la
para todas as ocasiões, pensando que
o mar é imprevisível, e o céu limpo
a cada instante pode mudar? Mas o que vejo,
seguindo a direcção dos seus olhos,
é esse limite para além do horizonte
em que ela se detém, sabendo que a
única saída que lhe resta é tirar a mão
da cabeça, abrir o chapéu de chuva, e
abrigar-se não do sol, mas de quem a olha.

domingo, maio 21, 2006

Outra Madalena

Victor Orsel

Mede com as mãos o espaço
de uma vida. Não sabe como se chamava,
quando viveu, que idade tinha
quando amou pela primeira vez. É
pura matéria o que tem pela frente,
e o frio do osso entra por ela,
pedindo uma conclusão. Mas
que pode ainda dizer? Nenhuma certeza
nasce do pó; e só um antigo
fogo reveste de saudade
a penumbra que a atormenta,
aquecendo-lhe o coração
onde pulsa o medo do mundo.

Madalena


O seu olhar cruza-se com as estrelas
que brilham no interior da caveira cujas
órbitas a reflectem. E então, o que pode
acontecer é sentir-se atraída
por esse universo, que a desafia
com o vazio da eternidade. Mas
o vento da tarde vem ao encontro
do seu corpo; e lembra-se do amor,
das conversas, dos rostos que
encheram as suas noites, quando a morte
não fazia parte da sua vida. Por fim,
pega na caveira e enterra-a no canteiro
da sua memória. Talvez uma rosa nasça
de dentro dela; e colherá as suas
pétalas, pensando nas estrelas
em que a eternidade se desfez.

Ouvindo o pássaro

Károly Ferenczy (1862-1917)

Às vezes, um pássaro parece cantar
para si próprio. Está na árvore, quando
o dia nasce, e a luz encontra-o
no meio da sombra. «Que manhã é esta,
pensa, em que o sol vem ter comigo
como se não houvesse mais ninguém
para o receber?» E saúda-o
com o seu canto, sem saber que
alguém o ouve, por trás dos arbustos,
e recolhe o que ele diz
para o dizer ao mundo.

sábado, maio 20, 2006

Primavera


Tem na cabeça um curso de história de arte, mas
quando as flores começam a abrir à sua volta, e
os ramos da árvore se agarram a ela, como braços
obscenos, liberta-se das preocupações teóricas e
oferece o corpo à vista do pintor, para que ele
o transforme numa alegoria da manhã. Entre ela
e o seu corpo, então, surge um conflito que não
consegue resolver: será a mulher do quadro mais
real do que ela? E terão aquelas flores o perfume
que ela respira, enquanto espera que o pintor
termine o seu retrato? As ideias que lhe passam
pela cabeça esvaziam-na de sentimentos; e pode
olhar friamente para aquela situação, pensando
que o próprio pintor se limita a executar o
que vê. Mas aquilo que está em frente dele
é ela; e quando ele se cansa, pousa os pincéis,
e arruma a tela para o fundo do atelier,
resta-lhe vestir-se, receber o que ele lhe
deve, e voltar à sua vida. Porém, já não é
a mesma coisa; e não se esquece da mulher
deitada num canto, respirando o perfume de um
jardim que vai secando, com o tempo, e que
sabe mais do que ela sobre o que é o destino
de quem entregou o seu corpo a quem não soube
o que fazer com ele, depois de o pintar.

À varanda

Marie de Régnier

A miss inglesa, que talvez fosse francesa, ouviu
a campainha tocar quando estava pronta para sair,
e perdeu a vontade de passear quando percebeu
que tinha de abrir. Quem estava à porta queria
saber se ela estava em casa, mas ela falou em
espanhol (não porque fosse espanhola, mas foi
a língua que lhe ocorreu). Do outro lado, a
decepção. Era o que ela queria. Bilingue, tri-
lingue, esta miss tira as línguas do chapéu,
como se fossem flores, e dá-lhes um arranjo
no ramo da frase, para as pôr ao sol. Se quem
tocou à campainha fosse espanhol, a frase
teria murchado; mas sem resposta, a miss
voltou a fechar a porta e pôs a pose de quem
não precisa já de sair porque acabou de
entrar, ou então, o que é melhor, de quem
vai entrar para voltar a sair. De facto, o
melhor lugar para ela estar é um átrio de
hotel, onde se cruzam todas as línguas, que
ela apanha enquanto anda, com o chapéu
bem pousado na cabeça, para que ninguém saiba
se ela está a entrar ou se vai sair, a
não ser o homem da recepção que tem a impressão
que já a viu, quando ela lhe diz que não.

Longe



Há uma gramática aberta
no teu corpo, e soletro cada palavra
que o teu olhar me oferece.

Limpo as sílabas que te
escorrem pelo rosto com um lenço de
vidro, descobrindo a tua transparência.

E sais de dentro de um pó de
advérbios, para que eu te dê um nome,
e a vida volte a correr por ti.

Anatomia

Gabriel von Max (1840-1915)

Olho este rosto, com a surpresa
da sua imobilidade. Que suspiro suspendem
os seus lábios? Que imagem se esconde
sob as pálpebras fechadas? Digo-lhe:
«Amo-te». Como se a pudesse
despertar. São outras as palavras
que a poderiam trazer de volta,
dissipando-se em nuvem no céu
da sua cabeça. «Nenhuma vida passa
duas vezes
pelo mesmo lugar», digo-lhe. E ela
sorri, como se me tivesse
ouvido.

sexta-feira, maio 19, 2006

Repouso

John White Alexandre

Esta manhã, quando acordei, e a tua imagem
se atravessou à minha frente, ainda olhei pela
janela, não fosse ter nascido da luz que entrava.
Depois, pensei que podia ter sido um pedaço de
sonho que se partiu durante a noite, quando
o atirei para o chão. Mas não vi
nada, à minha volta, como se uma imagem pudesse
ter desaparecido de um momento para o outro,
ou a noite nunca tivesse existido. Saí
de casa, atravessei a rua até ao café e, enquanto
o bebia, fechei os olhos. E a imagem voltou,
tão real que, quando olhei de novo para a frente,
a mesa vazia transformara-se num sofá onde
estavas estendida, em repouso, como se o dia todo
tivesse passado por ti, e a noite te envolvesse
com o seu peso branco.

Ouvindo o violino



Com o pé na cadeira, prepara-se para se
vestir; e o homem do violino nem repara que
ela está em cima da mesa, onde ainda ficou
a garrafa que ele quase esvaziou, até
ela lhe pedir que tocasse, enquanto
se veste para a noite de S. João. Aí,
nas aldeias junto aos lagos, as raparigas
fogem para as florestas, à espera do escuro
que não há-de chegar; mas não é para isso
que ela se veste. A sua juventude esvazia-se,
como o vinho na garrafa; e ao olhar para
o músico, o que ela pensa é se ele não
será uma pura abstracção, inventando a melodia
que ela gostaria de ouvir. E também poderia
sair atrás dele, para o meio da floresta onde
iria acender uma fogueira, antes que as amigas
chegassem. Mas a roupa que tem não serve
para uma festa; e o cabelo curto descobre-lhe
o pescoço, que a luz envolve, embora o
homem do violino não se preocupe com
a sua presença. Assim, ela sairá de cima da
mesa, deixando-o acabar a sua peça; e
meter-se-á na cama, enterrando os olhos
na almofada para não ver o sol que ainda
entra pela janela, depois do dia acabar, e
de todas as amigas se perderem na floresta.

quinta-feira, maio 18, 2006

Laranja

Félix Valloton

Ocasionalmente, uma laranja descasca-se
por si só. Arranco-a da árvore, e parte da casca
fica presa ao ramo. Vejo o sumo a escorrer
pelos rasgões; e tiro lentamente cada pedaço
até ficar, por fim, com os gomos na mão. Não me
custou nada; e ia levá-los à boca se o homem
do pomar não me tivesse prevenido: «Cuidado
com a calda contra os insectos.» Poderia dizer-lhe: «Mas
não vou comer a pele, só me interessa o sumo»; e
ele não me ouviria. A sua função é evitar
que a laranja seja comida antes de tempo. Então,
resta-me esperar que ele se volte, e vou para trás
da árvore, onde mato a sede.

Mulher com papagaio

Gustave Courbet

Ao pegar no papagaio, a mulher limita-se
a repetir o que ele lhe diz. E num bater de asas em
que nada se decide, cada um espera que o outro
o transforme em outro à sua semelhança. O papagaio
grita por ela, pensando ouvi-la; e ela grita
ao papagaio o que ele lhe diz, como
se fosse a primeira vez que o dissesse. Assim
trocam de lugar, para que fiquemos sem saber
se quem está em cima é papagaio ou mulher,
e em baixo, mulher ou papagaio. A não ser que
ela largue o papagaio; então, pode ser que
se ouça voar o que ela diz, enquanto o papagaio
a tira debaixo dela; e se veja a mulher voar,
quando o papagaio se deita, sem saber
o que dizer.

A rapariga das gaivotas

Gustave Courbet

As gaivotas são o escudo desta mulher que
as leva ao mercado dos deuses, onde serão vendidas
pelo melhor preço. A paisagem é o seu trunfo; e
ao arrancar-lhes as penas, enquanto os homens
a espreitam detrás das nuvens, ouvi-la-emos
cantar, num único murmúrio. Mas o movimento
dos lábios é quanto basta para entendermos o cansaço
que ela arrasta. E ao esvaziar o copo, enquanto
espero que ela me ponha os pássaros depenados
no prato do poema, penso na vinha das ondas
que aqueles pássaros debicaram, limpando-as
de espuma, para que os olhos se concentrassem
no negro dos rochedos. A mulher, porém,
interrompe o seu trabalho; e ao atirar para o lado
as gaivotas, sentindo nos dedos uma implosão
de fungos, faz o vazio à sua volta. «Por que me
prometeram a música das estrelas?», pergunta. E
um bater de asas nasce de dentro das suas pernas,
erguendo-a do fundo dos mortos, para que
um enxame de versos a restitua à vida.

quarta-feira, maio 17, 2006

Ao cair da noite

Nikolaj Alexandrowitsch Jaroshenko (1846-1898)

No banco do jardim, como numa sala de espera,
pergunta se alguém virá para a buscar, antes
que a noite chegue. E eu, do outro lado do tempo,
abro o caderno para lhe escrever: «Um dia
saberás o que disseram todas as cartas
que não abriste; e perante o vazio a que
a tua vida se resume, responderás que
pouco importa o tempo, quando a eternidade
te cobriu com a sua noite, há muito.»
Depois, vou ao correio. «Esqueceu-se
de pôr a morada», diz-me o empregado.
«Não sei para quem escrevo», digo-lhe.
E meto na caixa o envelope em branco
para que alguém, um dia, o descubra num
fundo de posta restante. E ao ler o que
lhe escrevi, talvez se sente num banco
de jardim, pouco antes da noite, pensando
no que é a vida em que todo o futuro se
fixa nesse instante que não chegou a ser.

Sónia de meias brancas

Rodolphe Théophile Bosshard

Ei-la, surgindo de um rebordo de cadeira,
como se fosse a onda que brota da mais nua
madrugada, ou lua despertando de um sonho
de salgema. De que navio afundado
foi a figura de proa? Em que brando rochedo
soltou o seu canto de sereia? Colho o fogo
ruivo dos seus cabelos; e desfaço-os,
para ninho de floridas serpentes, ou
ramo de pássaros com asas de algas. E
ela envolve de perfume o horizonte
dos seus braços, imóvel como o círculo
que o seu rosto desenha. Um dia, vê-la-eis
desaguar num frémito de estuário;
e a sua boca abrir-se-á num murmúrio
de maresia, oferecendo ao sol
a fria falésia do seu corpo.

A rapariga do retrato


Então, terei de falar de amor: fechei-o
nesta moldura, de que só os meus dedos
conhecem a chave; e ao rodá-la
na fechadura da memória,
abro a porta das sombras.

terça-feira, maio 16, 2006

Fonte


Um fauno, à tarde, procura onde beber;
e se a fonte está cheia, límpida
como o corpo da mulher, sacia a sede,
pensando que não é tarde nem cedo
para ver a água correr.

segunda-feira, maio 15, 2006

No verão (estudo)

Auguste Renoir

A propósito da arte, o melhor que se pode fazer
é fixar este rosto, e ver o que irrompe dos
seus olhos, mesmo que nem sempre o seu fundo
nos dê a transparência de que precisamos para
atingir a alma, isto é, o mistério que
envolve a natureza humana. Recorro a uma
simples comparação: se esta mulher fosse
como a fonte, e dela se pudesse beber o filtro
de onde emana a essência da vida, conhecer-se-ia
o sabor que fica na boca e se infiltra
pelas palavras que dizemos, para que
os ouvidos as recebam sob a forma do mais
doce dos venenos. O que ela me diz, porém,
é que o seu coração é como a ave que perdeu
o rumo; e pede-me que lhe indique o eixo
do divino, por onde passam as constelações
migratórias do ocaso. Dou-lhe a bússola do poema;
e ela olha-a, como se fosse um espelho,
e o seu rosto tivesse o perfil de um mapa.

domingo, maio 14, 2006

Mulher numa cadeira grega (Penélope)

David Ligare

Muito basicamente, a experiência da viagem
parte de uma ideia de ilha: e o destino, a que se dá
o nome de Ítaca (desde os gregos), obedece
a um desenho de cais que vai sendo esboçado
mentalmente até ao dia em que, sem que ninguém
o esperasse, o gajeiro anuncia terra, fazendo
com que todos os tripulantes acorram à amurada,
de onde se avista uma linha de praia, emergindo
do horizonte, e as primeiras gaivotas, que no
princípio não passam de pontos negros sobre
a rebentação. Mas se passarmos do barco para
a ilha, a situação não é diferente; e também
a mulher que se senta no terraço, numa cadeira
grega, espreita em direcção ao horizonte, que
insiste em manter-se deserto. Nessa manhã,
porém, o seu olhar cruza-se com esse mastro que
rompe a primeira bruma do dia; e pode pensar,
por instantes, que é apenas uma ilusão de
óptica, e chamar alguém para a ajudar a ver
o que se avista onde nada deveria haver. Se
ela insistir na sua ideia, o barco limitar-se-á
a passar ao longo da costa, como se ninguém
habitasse a ilha; e só quando o mar volta a ficar
vazio ela se levanta da cadeira, dá uma volta ao
terraço (a tarde começa a escurecer), como se
tivesse outra coisa a fazer para além de estar
à espera, e olha para dentro de si própria onde
uma armada se afunda, sem que ela faça o que
quer que seja para impedir o naufrágio.

A mulher das flores

Gustave Courbet

No meio das flores, a mulher encontra o
movimento de rotação da árvore; e à sua volta
as pétalas caem, numa rotação de corolas
de que ela é o centro.

Mulher

Giacomo Grosso

Ocupa o centro, como um candelabro;
e a luz que nela se acende transmite-se
ao corpo, que brilha como oculto
diadema.

Vi-a, uma noite, sob o clarão
imenso do horizonte; desde então
apanho os fragmentos da sua imagem,
e colo-os de memória.

O seu rosto, porém, mantém-se
intacto sob as ramagens do tempo,
enquanto afasto folhas e flores para
o olhar num puro instante.

Que ela seja o alfa e o ómega
de todos os que sofrem de solidão;
e o seu ventre fecunde a terra
estéril da ausência.

Autoretrato

Elin Danielson-Gambogi


Aquilo a que chamam um corpo pode ser
transformado em linhas, cores, manchas
que se espalham pela superfície onde
o desenho, como se alguém pudesse
juntar o que é incompreensível ao
que nasce da pura percepção de uma
palavra. Refiro-me a essa mistura
de alma e de mim que espalho por
entre as tintas a que roubo a minha
imagem; e é como se nascesse de
destroços, de um campo de batalha
de formas e memórias, de ruínas
em que recolho sombras e ervas,
para as colar sobre a minha pele,
criando o que dizem ser, por um
efeito de realidade, eu. E
não sei o que vejo, quando me
olho: se eu sou esta que me
oferece o seu reflexo, ou se é ela
que sai de dentro de mim e se
atravessa na minha vida, como
se quisesse roubar-me a mim própria.

sábado, maio 13, 2006

Mulher c. 1880

Carlos Relvas

O rosto semi-escondido pela mão esquerda,
o leque no colo, ri-se. E esse riso, que atravessa
os séculos, chega-me aos ouvidos: o mais
belo riso de mulher, apagando a austeridade
do vestido, os botões de metal na manga
do casaco, o busto tapado pelo escuro da roupa.
Nesse riso, ouço bater o leque que ela
tira do colo; e o vento da vida que
ele faz soprar na minha cabeça
arranca ao esquecimento
o corpo desta mulher.

Sinfonia em branco

Whistler

Desenham uma curva de abóbada sob o
impulso do branco. Os braços bordejam
o cais de um beijo esquecido, e
o olhar fixa-se numa erupção de azul
que se solta do sexo flamejante
do sol. Aquietam-se num mistério
de nimbo matinal, enquanto um piano
ressoa no fundo dos seus ouvidos,
de onde sobe o canto que lhes
estremece os corpos. Uma ressaca de
constelações seca-lhes a boca; e
não falam, murmurando apenas
uma queixa de outono. Mas logo
a luz verde da manhã entra pela
janela, empurrando um pássaro
desorientado para dentro de casa. Ao
persegui-lo com a vista, a melancolia
desaparece dos seus rostos. Despertam
para o dia. Pouco a pouco, a névoa
dos seus vestidos dissipa-se;
e veste-as apenas uma ondulação
de luz transparente.

sexta-feira, maio 12, 2006

No atelier

Akseli Gallen-Kallela (1865-1931)

Quando a modelo se sentou no sofá, e me pediu que lhe
acendesse o cigarro, disse-lhe que as leis mais recentes
impedem o fumo nos locais de trabalho. Ela disse-me que
assim não trabalhava; e como a greve nos libertava de
preocupações quanto a essa, e a todas as outras
imposições legais, fizemos a revolução. Enquanto ela fumava,
abri uma garrafa de whisky e servi-me; ela estendia-se
no sofá, como se fosse dela, e oferecia a sua pose
para que a retratassem, sem mais nada, para uma eternidade
de que fosse o único e absoluto centro. Foi então
que pensei no que estava a fazer: se o momento era de
pose, a modelo estava a furar a sua própria greve,
e voltava a não ser possível fumar porque estávamos
de novo num local de trabalho. E eu próprio, nessa
situação, também não podia acabar o meu uísque.«E
se te vestisses?» perguntei-lhe. Ela riu-se: «Estou
no meu fato de trabalho.» E inclinava-se cada vez
mais no sofá. O que se passou depois, não sei se por
causa do fumo se por causa do uísque, não o sei contar;
e se o soubesse, também não o contava, para que
ela não voltasse a fazer greve, e eu a revolução.

Dina com lenço

Maillol

O pintor, que estava cansado de ter sempre os mesmos
modelos, foi buscar a sua amada para lhe servir de inspi-
ração. No entanto, ela disse-lhe que precisava de se
cobrir; e ele atou-lhe um lenço à cabeça para que ela
não aparecesse completamente despida. O pintor não
gostava de convenções; e ela também não. Apesar
disso, nesta imagem académica, ela desvia os olhos
para o lado, para que ninguém repare nela. O pintor,
porém, revela os seus segredos, sem se importar
com o que hão-de dizer à sua volta. E ela no fundo
não se importa com isso, fingindo que está
no intervalo de guardar patos, ou então que se isolou
das ninfas com quem falava, e que a aborreciam
com as suas conversas de deuses e de pastores. Porém, a
sua solidão é apenas aparente - e pede-nos apenas
que a olhemos com o sentimento de que está
à nossa espera para tirar o lenço da cabeça,
sacudir os cabelos, e sair do quadro.

Nu



Transforma-se num objecto místico se
a puser por trás da imagem da deusa; ou
talvez seja ela própria a deusa que
espera o altar, para que a celebrem
sob a tumultuosa doçura dos sentidos.

A sua boca saboreia as palavras
do amor; e vejo-lhe no rosto
um frémito de satisfação, que
lança à terra como semente, ou
simples desejo de primavera.

Corre por dentro dela o vinho
do instante; e recolho-o na taça
do poema, para que ela o beba
na embriaguez da noite, quando
se libertar do lençol que a cobre,
e abrir o seu corpo aos viajantes
do sonho.

Banhista de costas limpando-se com toalha

Félix Valloton

Adapta-se à paisagem como se fizesse parte dela,
pedaço de natureza, ou simples pormenor de
litoral. Também podia ser uma gaivota em busca
de repouso, esculpida pelas mãos de um deus
provisório. Ou uma sereia transformada em
mulher, num afloramento líquido por entre
rochedos invisíveis. À sua frente, o mar
oferece-lhe o abrigo do seu abismo; mas
ela hesita em avançar, esperando que
a maré se torne propícia, ou que o sol atinja
o zénite para que os seus cabelos fiquem
no ponto exacto de um prumo de luz. E
o seu corpo brilha quando ela o limpa
de sombras, oferecendo-se ao vento que
a empurra para o horizonte, como se fosse
um barco de velas desfraldadas, sem
outro destino para além do coração do dia.

quinta-feira, maio 11, 2006

Um doce bilhete

Auguste Toulmouche

Não sei o que lê; mas atravessa a sala
como se o olhar a empurrasse em direcção
ao céu, onde a espera um destino de nuvem.

E demora-se na travessia das palavras
para a imagem, perdendo-se num beco
de bruma que a impaciência dissipa.

Os seus dedos desenham uma arquitectura
de sensações com o lápis do sonho,
riscando o rosto da melancolia.

E a areia do tempo escorre pelo seu
corpo, levando atrás dela o desejo
que a prende ao papel.

Rosa

Giorgio Belloni


Podia esquecer tudo o que me disseste, ouvir
o canto do pássaro que passou nesta sala,
respirar o perfume do jardim que entra pela
janela, olhar para fora de mim, para aquilo
a que chamam o mundo. No entanto, o que
tenho pela frente são as lembranças que
procurei esquecer, a imagem de que não me
libertarei, a voz que ecoa na minha
memória, dizendo o nome tantas vezes
murmurado. E encosto-me a este instante,
contando o tempo que falta para que a
luz desapareça, e a noite me traga
o silêncio de onde nascem os sonhos.

O espelho

Gustave de Jonghe


Entre ti e a mulher do espelho abro a porta
por onde entram os sonhos. Não sei, de facto,
para quem olhas, ou se é essa que está à tua
frente (qual delas?) que te coloca a pergunta
a que terás de responder. E se um vento
interior percorre a tua alma, sacudindo
as emoções como se fossem arbustos,
peço-te que os teus lábios não deixem
transparecer a inquietação. Fecha os olhos,
liberta-te de ti, e sai do espelho,
deixando o vestido para trás. Verás
os sonhos caírem no chão, como cada
peça que fores tirando; e o sol virá
cobrir-te com o seu linho de brilho
transparente, para que um rio de luz
volte a correr pelo teu rosto.

quarta-feira, maio 10, 2006

Diz-me tudo

Boussod

Há uma regra inflexível no amor: o seu horizonte
tem a vastidão do mar, para lá do qual outros
horizontes se abrem se o muro, ao longo da
praia, não impuser os seus limites a quem
deseja a viagem. O espírito, porém, seguindo
um rumo platónico, voa sobre as ondas,
afastando-se da apressada respiração das marés;
e é no alto, onde se confundem nuvens e
gaivotas, que o olhar descobre a imensidão
do oceano para que o sentimento o empurra,
se não houver pela sua frente um porto,
ou uma ilha, que ponham fim à navegação.

Mas estas são apenas as convenções que
obrigam a imaginação; porque se o amor se
libertar das palavras que o oprimem, dando
ao corpo a mesma plenitude que se encontra
neste mar, está aberto o caminho para o abismo
em que o ser se dilui no puro espaço, onde
só o azul existe. Então, os dedos tocam
o teclado do infinito, e ouvir-se-á a música
dos murmúrios que nenhum ouvido recebe
se os sons da terra o magoam. E é como
se o dia durasse, para além do tempo e
das coisas da vida, até ao fim do mundo.

terça-feira, maio 09, 2006

Retrato de A.P. Ostroumowa-Lebedewa

Konstantin Andrejewitsch Somow (1869-1939)


Um rosto de requiem, não porque a morte nele se
imprima (o tempo encarregou-se de o fazer), mas
porque um medo se exala dos seus olhos, fixos
em algo que pode ser o nada, o vazio do ser, ou
apenas a porta aberta por onde entra o frio
que a recolhe em si própria. Abraço a tua
eternidade; e leio na tua boca a frase que
nela se adivinha, quando o silêncio da tarde
ainda pesa: «Vem comigo»; ou antes, um
convite à viagem de onde ninguém regressa,
aproveitando a fresta do tempo em que o teu
corpo cabe. E se espreito por aí, um céu
de temporal alastra no céu da página, até
onde o horizonte o permite. Por vezes,
adivinho a tua mão, um gesto luminoso
no escuro da planície; e logo te perco,
como se o olhar dos mortos não permitisse
uma demora, uma simples conversa, ou
a imagem do reflexo que se perdeu quando,
no teu canto, desviaste os olhos, e deixei
de ouvir o que me querias dizer.

Arrufos

Belmiro Barbosa de Almeida Júnior (1858-1935)
A rosa caída não respira, como um pássaro
morto; e o seu corpo, estendido na cama,
esgota o pranto da tarde, como se todas
as sombras do dia se juntassem à sua
volta. Poderia estender a mão, e apanhar
a flor; mas receia que outra mão se
interponha entre ela e a rosa, e a puxe
para o reino em que nenhum pássaro canta.

Por vezes, um soluço agita-lhe o ombro;
e é o seu único movimento, como
se não tivesse força para se erguer,
puxar os cabelos para trás da cabeça,
e olhar o vazio, onde se esconde
o destino que a assombra. «Pode ser
o destino da rosa», digo-lhe; e cito
Ronsard, para que ela me ouça, e siga
o rumo do pássaro, o que voou junto
à janela, e preferiu subir até ao azul
a entrar no mundo que não lhe pertence.

Mas permanece deitada, e fez desta
cama o seu ninho, como se pudesse nascer
daí para uma outra vida, ou uma outra rosa.

segunda-feira, maio 08, 2006

Estudo de mulher

Rodolfo Amoedo (1857-1941)


Esta mulher simplesmente deitada, e colhida com
a colher da tarde, é o fruto que ficou na árvore onde
os pássaros o procuram, e passam de lado, como se
o não sentissem. É o fruto que me resta olhar, com
a sua pele tecida pelos ventos do verão, e a polpa
a sair, como se a terra estivesse pronta para a
receber. Estendo-a com a sua frescura de nuvem,
que pinto com a cor tensa do amanhecer, ouvindo
a música dos seus lábios descer-me para o fundo
da alma, onde lhe dou a guarida dos amantes. É
ela o centro da cedilha que ponho no intervalo
de cada frase, para que um sopro de silêncio se
instale no coração da primavera. E se um
murmúrio o rompe, levem-no os ouvidos em que
pousou, para que alguém o repita, e noutros
lábios se faça o que aqui se vê, e já passou.