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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

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quinta-feira, janeiro 12, 2017

O que era ser fixe
Muitas vezes perdemos de vista que Soares não foi sempre um político bem-sucedido: que, como assinalou João Soares no discurso do funeral, ele “viveu mais tempo em ditadura do que em liberdade”. Foi na resistência à ditadura que se moldaram os traços essenciais do seu modo de funcionamento político, como bem explica Rui Ramos no seu ensaio no Observador. Afinal de contas, Soares estava a meses de completar 50 anos quando a ditadura caiu. Tinha 49 da primeira vez que apareceu na televisão. Tinha sido deportado aos 44 para uma ilha perdida no meio do Atlântico, quase sem comunicações com o país (sem telefone, sem televisão), e sem quaisquer perspectivas de realização pessoal – nem pessoais nem políticas.
Quando recebi a notícia da morte de Soares, escrevi aqui a primeira coisa que me apareceu na cabeça: que ele gostava muito de viver. Não me dei conta de que isso podia ser percebido como uma trivialidade inócua, porque queria dizer mais que isso. Toda a gente sabe que ele era um bon vivant, e o próprio sempre fez questão de o mostrar: não era coisa de que pudesse ter vergonha. Mas o que é preciso entender também é que esse gosto pela vida, se tinha alguma coisa de congénito, era ao mesmo tempo uma disciplina mental, aprendida e aperfeiçoada, como uma segunda natureza, durante os anos difíceis. Não se detinha demasiado nas derrotas; não se consumia na introspecção; não se permitia ficar preso ao passado durante muito tempo. A sua disposição “solar” era um mecanismo de sobrevivência, aprendido e curtido na ditadura, e parte de uma constelação mental mais ampla, parte indispensável do seu arsenal político.
A distância entre o mundo em que Soares se formou politicamente e aquele em que nós, como país, o conhecemos (aquele em que se tornou num político extremamente bem-sucedido) tem outras consequências curiosas. O slogan que lhe ficou para sempre ligado, o das suas vitórias eleitorais mais expressivas – “Soares é fixe” – era, estou convencido, entendido de maneiras diferentes por aqueles que o gritavam e pelo próprio Soares. Para Soares, e para a sua geração, ser "fixe" não era apenas, nem sobretudo, ser porreiro, divertido: ser fixe era ser firme, confiável, alguém com quem se podia contar; e isso era um valor inestimável em ditadura, talvez o valor mais importante de todos. Lembro-me de ouvir Soares usar a palavra nesse sentido, assim como me lembro de o meu avô a usar. E era precisamente assim que Soares queria que o vissem: não o assustava perder eleições, ir contra a opinião predominante, andar a contra-corrente; mas sempre quis ser visto como um tipo firme, um tipo que não falhava, alguém com quem se podia contar porque ele se bateria.
Das memórias pessoais há uma que guardo com particular estima, da noite da sua maior derrota eleitoral, nas presidenciais de 2006. Às tantas, os votos contados, a noite terminada, ele virou-se para mim, como um mais velho se dirige a um mais novo procurando consolá-lo, e perguntou: “Então? Muito descorçoado?” Gosto dessa ideia de que fosse ele que tivesse que me consolar a mim, e gosto da palavra antiga que usou para falar disso. Creio que a derrota o deixou a ele, sim, descorçoado, mas, retomando a velha disciplina, continuou em frente, sem se deixar abater.

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