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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

teguivel@gmail.com

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domingo, fevereiro 29, 2004

Já agora, o número da clínica?
A Pública de hoje vem realmente interessante. Na astrologia, a Maya recomenda-me que «controle a instabilidade emocional por via clínica.»
 
A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
Mas o Público faz o que pode para tentar reconfortar-nos:

O cinema pornográfico «não passa de um filme cheio de truques, como o resto do cinema. Os filmes pornográficos rodam-se em vários dias e, depois, montam-se. Os protagonistas são o resultado de uma selecção exaustiva e, na maioria das vezes, usam próteses para terem o que a natureza não lhes deu. As mulheres sempre prontas para o sexo são actrizes e os homens capazes de grandes façanhas, ou de coitos eternos, são actores que recorrem frequentemente a próteses de pénis para simular erecções prolongadas. Acreditarmos no que ali se passa é como admitir que o Super-homem voa ou que o Homem-Aranha trepa pelas paredes. (...) Podem imitar-se cenas e situações, copiar roupas e diálogos... mas pouco mais.»
 
Sempre gosta o Pacheco de olhar a Vanessa, para lhe cuspir

Maoístas praticando a auto-ironia (1966)

A Vanessa, que já teve vários namorados e também já andou com o Cavia - qual de nós nunca andou com o Cavia? -, e que depois de acabar com o Cavia chegou a sentir-lhe a falta - qual de nós não o sentiu, num momento ou noutro? -, é um extraordinário retrato do nosso mundo, da nossa pequenez. Dos nossos, não do Pacheco, que a propósito constata:

«A "Vanessa" (...) é um muito interessante e conseguido exemplo do tumulto superficial que passa hoje por ser o protótipo das relações afectivas modernas. Milhares de "Vanessas" animam-se (...) para pensarem que estão vivas. Só dão por ela do seu estado quando envelhecem, porque as "Vanessas" envelhecem mal. Já se nota.»

Ensina-nos, Pacheco, tu que sabes: como se envelhece muito bem?
 
A verdade escondida (ou: é melhor ouvir sempre primeiro um sociólogo)
Nos cinco anos do Bloco de Esquerda, Farelo Lopes, professor de Sociologia Política no ISCTE, assinala ao Público que o BE não é um partido, mas «um partido em vias de se federalizar». E explica: o PSR, a UDP e a Política XXI, que deram origem ao Bloco, «ainda têm um peso significativo», donde «certamente existirá alguma conflitualidade interna, que eles conseguem esconder muito bem».
A solidez teórica da sociologia política produz os seus frutos: aquilo que não vemos, sabemos que está lá. Louçã, Fazenda, Miguel Portas «conseguindo esconder muito bem» - menos ao olhar da águia.
Que um partido tenha facções internas é coisa espantosa, capaz de pôr em causa a sua natureza de partido: a sociologia política nunca tinha visto nada assim. E há mais, outra coisa nos revela esta natureza «em vias de se federalizar»: é que o BE tem uma direcção colectiva, sem presidente, sem secretário-geral, mesmo que na prática passe a imagem pública de que Francisco Louçã é o líder.
Mas peraí: a Política XXI nunca teve líder. A UDP, se bem me lembro (posso estar enganado), não tinha líder. E o PSR - tinha uma direcção colegial... mesmo que na prática passasse a imagem pública de que Francisco Louçã era o líder.
Pergunto-me para onde vamos se algum dia perdermos o grande apport da sociologia política: deixaremos de ver as divergências que se «escondem muito bem» e de distinguir os partidos que estão «em vias de se federalizar».
 
Infelizmente, o bom não resiste ao belo


There was a part of me that was afraid to write all this down in a book, just as a part of me was afraid to explain to a therapist precisely what it had all come to mean: I was worried that by so doing it would all go, and I'd be left with this great big hole where football used to be. It hasn't happened, not yet, anyway. What has happened is more disturbing: I have begun to relish the misery that football provides. (...) I have been cold and bored and unhappy for so long that when Arsenal are good, I feel slightly but unmistakably disoriented, but I shouldn't have worried. What goes around, comes around.

Este post, e em particular este excerto, assinala os 100 anos do Benfica; assinala-os, não os homenageia. Homenageia o André e o seu post. Ofereci-lhe há anos o livro que aqui cito - Fever Pitch de Nick Hornby -, que fala no Benfica nas primeiras e nas últimas páginas. (Não cito a tradução, que existe, portuguesa: não a tenho e imagino que seja péssima).
Há uns dias quase que escrevi uma coisa entusiástica sobre o Porto-Manchester. Por mais que a vida me tenha ensinado a em jogos com ingleses, e em particular com o Manchester, torcer sempre contra os ingleses, não sou dado ao patriotismo, muito menos desencadeado pelo Porto. Mas acontece agora, na obra de arte de McCarthy e na forma como o Porto joga, um fenómeno talvez parecido com o Benfica de 82-84 que o André evoca e que suscitava simpatias muito para além dos benfiquistas. Para quem gosta de bola, a personagem de José Mourinho, por horrível que seja, tornou-se um pormenor negligenciável perante os efeitos que produz no futebol da sua equipa.
O mesmo se passa em relação à memória que guardo do Jardel: por mais tolices que tenha feito, faça e venha a saber-se que fez, deu-nos numa escassa época um gozo que a nós sportinguistas possivelmente ninguém tinha dado desde Futre, há vinte anos. No amor, há criaturas que traem, enganam, abandonam e no fim desprezam, mas são tão bonitas que a raiva que o vitimado sente não dura tanto como uma espécie de nostalgia do momento anterior à traição, uma espécie de desgosto pelo próprio fracasso. Há criaturas que não nos merecem e, ainda assim, são boas demais para nós. Foi o caso do Jardel, que marcou qualquer coisa como 50 golos numa só época e desapareceu, deixando no fim esta sensação de que ainda somos nós que continuamos infinitamente em dívida com o mercenário.
 

sábado, fevereiro 28, 2004

A penalização do aborto não é questão de consciência
Convinha não reduzir o debate a «uma questão de consciência»: defender o recurso ao aborto é, efectivamente, uma questão de consciência; discutir a penalização de quem recorre ao aborto é matéria de lei.

[Ana Sá Lopes, no Público de hoje]
 
Precisamos muito de gostar de nós mesmos
ADMIRATION, n. Our polite recognition of another's resemblance to ourselves.

[Ambrose Bierce, The Devil's Dictionary]
 

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

O prazo foi alargado
O Universo vai durar mais 30.000 milhões de anos do que se pensava.
Amanhã aproveito e durmo até mais tarde.
 
Faz qualquer coisa de gay


Este blog anda de facto a precisar de qualquer coisa gay. Arrumo projectos sobre a Cameron Diaz, e agora ponho uma foto de Gael García Bernal em O Crime do Padre Amaro, excelente filme. Gajos bonitos irritam-me, mas só os que conheço.
 
Very macho
Consta que este blog anda a ficar um bocado gay. I wish: just gay enough to get the babes.
 
Estudantes de RI


O estereótipo associado à disciplina académica das Relações Internacionais merece um estudo. Este é o cartaz da Federação Nacional de Estudantes de Relações Internacionais Brasileira.
 
O passado é mais distante do que um país distante
Já houve amigos do outro lado do Planeta que me reencontraram graças ao blog. Nenhum colega da escola primária estabeleceu contacto.
 
Porque foi excelente e não estava previsto
(O Pedro Lomba já apagou todos os arquivos do blog)


Let's not come back here again, 'cos it'll never be this much fun.
[Charlotte para Bob]
 
O melhor post de Pedro Lomba
Eis o melhor dos posts de Pedro Lomba. Revela generosidade e compaixão. Houve um tempo em que pensei que também revelava ironia, mas não: só generosidade e compaixão.

Ivan Nunes criou um blog. Perdoamos ao Ivan o tempo que perdeu à procura de um novo pensamento de esquerda. O que lá vai, lá vai. God save the queen. Quer dizer, bem-vindo.
[Pedro Lomba, 4.7.2003]
 

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Lembro-me do slogan de há 25 anos


Li o Calvin; depois li a oblíqua apologia que José Manuel Fernandes faz de Luís Villas-Boas. Então pensei que a tira do pai do Calvin não tem de ser só sobre mim e as minhas confusões quotidianas: é também o José Manuel Fernandes, a direcção do PCP, todos os (ex-)maoístas.
 

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

O Lomba ridículo
O Pedro Lomba pediu-me que parasse de transcrever posts dele: tem medo que isto comece a «expô-lo ao ridículo». Hesitei, mas não lhe faço a vontade.
Primeiro, por causa de uma referência bibliográfica: sugiro-lhe que pegue num livro que ele leu devotamente, O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, e consulte a pág. 272. Lá está, dez linhas a contar do fim, inequivocamente Nelson Rodrigues:
«Só os imbecis têm medo do ridículo. Considero um soturno pobre-diabo o sujeito que não consegue ser ridículo de vez em quando.»
Segundo, encontrei hoje uma leitora que espontaneamente me agradeceu a selecção de posts do Lomba que tenho vindo a publicar. Podia pensar-se que entre o desejo do autor e o desejo de uma leitora eu devesse preferir o primeiro; mas é o contrário. A leitora gosta genuinamente do Flor de Obsessão; o Pedro Lomba, nem tanto. O Lomba chega a manifestar intenções assassinas: diz que pretende apagar, erradicar, extinguir para sempre o seu próprio blog. A leitora dá-nos o amor da leitura diária. Teremos o direito de hesitar entre uma pessoa que ama e outra que planeia um assassínio? Não temos.
Outro leitor, distraído, supôs ser da minha autoria um texto do Pedro Lomba que transcrevi aqui. Ora, receber um elogio por alguma coisa que se escreveu é gratificante, mas é sempre, inevitavelmente, insatisfatório. O narcisista ama-se e ao que faz, mas por amar sabe que não é razoável, e alimenta uma angústia mais ou menos secreta, mais ou menos intensa, sobre as qualidades do objecto do seu amor, ou seja, sobre as suas próprias qualidades. O elogio constitui um bálsamo, um ansiolítico. Mas como evitar que a dúvida íntima que alimentamos sobre nós mesmos se transfira, insidiosamente, e acabe por recair sobre a pessoa que fez o elogio? Quem nos elogia, será sensato? Será complacente? Facilmente enganável? Tolo?
Um elogio que me é feito a mim é um multiplicador de complicações, um disseminador de dúvidas. Porém, um elogio feito a outro não tem nenhuma ambiguidade. Quando o leitor me diz: «grande texto, aquele sobre a miúda que pediu um conselho», eu e ele estamos em perfeito, tranquilo e objectivo acordo: só posso reconhecer-lhe a perspicácia. Se, ainda por cima, o leitor deseja atribuir-me a mim a autoria de uma coisa bela que de facto não fiz, não será isso profundamente lisonjeiro? Algum mérito devo ter para que a confusão seja possível. (Subitamente descubro a motivação mais profunda, mais racional, mais respeitável, para o plágio. Devemos compreender o plagiador e até reconhecer que quem plagia sem que se desconfie tem, por definição, algum mérito).
Por fim: o Pedro Lomba disse hoje, em mais uma sessão do «É a cultura, estúpido», que «os portugueses são um povo que precisa de ser mandado». Ora, um homem que quer ser mandado não me dá ordens sobre o que eu ponho no meu blog. Se alguém tiver que mandar, sou eu nele. Ponho os posts que me apetecer, republico-lhe o blog inteiro se me der na gana, e muita sorte terá se não o obrigar a escrever nada de novo. Já vi que com a malta da direita tem de ser assim: a partir de agora, anda-se na linha.

A propósito, no livro supra-citado:
«O Nelson Rodrigues político é uma caricatura do Nelson Rodrigues real», costumava dizer o jornalista Hermano Alves. [pág. 381]
Pois, tens a quem sair.
 
Tchau Lomba: Nelson Rodrigues, eu mesmo
Nelson Rodrigues é o autor mais anti-niilista que eu conheço e o pior que podemos fazer é vê-lo como um provocador imoderado porque um provocador não pensa necessariamente o que diz. Atenção que Nelson Rodrigues não é um romântico, embora possa, muitas vezes, parecer. (...) O romantismo não tem esta ambivalência, este conflito; o romantismo é mera estetização, mero voo de águia, uma harmonia falsamente idealizada. A cabeça de Nelson Rodrigues fervilhava de contradição, consigo mesmo e com o mundo.
[Pedro Lomba, 24.6.2003]
 

terça-feira, fevereiro 24, 2004

Tchau Lomba: recém-casados, contidos
Não sou de conselhos. A minha aptidão para aconselhar é fraquíssima. Se eu fosse bom a aconselhar, estaria na política, não aqui. Acreditem: já experimentei e não resultou. Lembro um dia, uma noite. Estou em casa e recebo a visita de uma antiga colega de escola, querendo conversar comigo. Saio prontamente e tudo me passa pela cabeça naquele instante. O homem ganha um convencimento muito peculiar, muito idiota quando é abordado por uma mulher. Somos míseros, patéticos e só percebemos depois. E eu sigo com ela para o carro, sem saber bem o que esperar, derramando a minha curiosidade pela rua, pelos candeeiros, por quem nos cercava. No fim, ouço-a falar sobre o namorado que, a um mês do casamento, decide ser infiel. Não sei o que vocês diriam, mas eu disse o óbvio, o previsível, o mais obtuso. Disse-lhe, num acesso de mau discernimento: «vais ter de o deixar». Ela detestou o recado. Não queria que eu lhe dissesse isto, que eu só tivesse isto para lhe dizer. Todos lhe comunicavam o mesmo, todos a incitavam a cancelar o casamento; e ela esperava de mim outra coisa, que eu a convencesse contra ela mesma que era melhor continuar. Mas eu não consegui, não fui capaz. Não sirvo para conselhos, para opiniões a pedido. Meses depois, encontro-os na rua, brandos, recém-casados, contidos. E ela passou por mim, fingindo que não me via.
[Pedro Lomba, 10.10.2003]
 
A propósito, um fado
Se foi Deus que quis assim
Nem tu sabes nem eu sei,
Mas tenho-te presa a mim
Por tudo o que não te dei.

Se eu te desse o que tu queres,
Quem sabe se nesse dia
Depois de tu me prenderes
Eu nunca mais te prendia.

E se me queres como sou
Não me queiras prisioneiro:
Não te daria o que dou
Se me desse por inteiro.
Só posso dar-te o que dou
Porque não me dou inteiro.

E por muito que te queixes
Só espero que tu entendas
Que prefiro que me deixes
A deixar que tu me prendas.

Bem sei que é contradição
Eu pedir-te liberdade
Sabendo que a condição
É ficar preso à saudade.

["Fado Sagitário", letra de Manuela de Freitas, cantado por Camané no disco «Pelo Dia Dentro», 2001]
 
Excelente recensão
A São José Almeida fez um excelente trabalho sobre o livro de memórias de Maria Eugénia Varela Gomes. Espero um dia destes ter tempo para tentar explicar porquê. É provável que o livro não dure muito tempo nos escaparates, rapidamente fique esquecido, e ele merecia mais público do que aquele que em princípio estará inclinado para o ler. É um livro da resistência à ditadura; mas não é um livro apenas político, como se a política fosse a única coisa ou uma coisa desligada da maneira como se vive a vida inteira (na extensão e na profundidade). Nas primeiras páginas, por exemplo, da conversa com Maria Manuela Cruzeiro, Maria Eugénia Varela Gomes discorre sobre fado e Amália.
 

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

Cultura linda
Durante um mês, a apresentadora Anabela Mota Ribeiro terminou o programa da forma mais insuportável que o paternalismo poderia assumir. Todos os dias ela acabava o «Magazine» com uma frase do género: «Hoje vou ao cinema». Ou: «Hoje vou ler um romance». E nós a sabermos que era mentira porque ela jamais diria «hoje vou lavar a roupa» ou «hoje vou ter de ir visitar a minha sogra». A frase mudou, entretanto, concretizando-se mais: «Hoje vou ler o livro tal». Mas continua a ser mentira. Dá vontade de a gente se encharcar em whisky e nunca mais ler um livro na vida.
O «Magazine» mantém ainda o defeito do «Acontece» de ser sempre favorável à coisa cultural: vivemos num país culturalmente perfeito, onde não há más políticas culturais, maus espectáculos, maus livros, maus filmes e até maus críticos. Tudo é belo, tudo é sorriso, tudo é cultura linda.
[Eduardo Cintra Torres]
 
Tchau Lomba: a gripe que não sei se acabará
A gripe atira-me para a cama. Passo o domingo a tiritar de frio, insultando o mundo. Cabeça pesada. Não quero ver ninguém. Abro um livro mas não vou além da primeira página. Nada. Não retenho nada. A minha paciência para a actividade intelectual é ínfima. Consigo ver televisão. Não consigo ler. Escrever, muito menos. Sei que tenho de escrever. Sei o que tenho de escrever. Escrever tornou-se uma parte grande da minha vida. Não posso parar. Levanto-me, sento-me à secretária e tento garatujar alguma coisa com sentido. Não sai nada. Não consigo. A gripe é um cerco à nossa cabeça. Penso que desaprendi. Cambaleio até à cama. Estendo-me. Porque é que quero escrever? O que seria de mim se deixasse de poder escrever? Se já não conseguisse. Andei anos a sofrer de uma espécie de gripe. Uma gripe que me imobilizava. Escrevia a custo. Escrevia com angústia. Escrevia bem, escrevia mal, não escrevia. Fui-me libertando aos poucos dessa prisão. Vou-me libertando. Não sei quando acabará a gripe. Não sei se acabará.
[Pedro Lomba, 10.11.2003]
 

domingo, fevereiro 22, 2004

Este país é católico
Santana Lopes é o protótipo do político populista. Zurzi-lo por isso e opor-lhe Cavaco Silva como antonímia é um rematado disparate: nessa matéria, Cavaco sempre foi o mestre. Uma campanha eleitoral de Santana Lopes tem a mesma base de uma campanha eleitoral de Cavaco Silva - está lá dentro toda a América Latina.
(...) Tive o privilégio profissional de acompanhar durante vários dias a campanha eleitoral de Cavaco Silva para as presidenciais que deram a primeira vitória a Jorge Sampaio, em 1996. De Norte ao Sul do país, os mandatários cavaquistas gritavam contra o «candidato ateu» [Jorge Sampaio]. Chegados ao Minho de divinas tradições, o próprio Cavaco Silva, num comício improvisado, não se conteve e, também ele, gritou: «Este país é católico!»

[Ana Sá Lopes, no Público de ontem. Não fui só eu que não me esqueci.]
 
Tchau Lomba: andar por ali todos os domingos
Eu descia a Rua Augusta até ao Cais das Colunas para poder ver muitas pessoas ao mesmo tempo, vidas diferentes, figuras, rostos, corpos em trânsito, a caminho. Durante a semana, encontrava-se mais gente mas tudo era mais vagaroso aos domingos, por isso mesmo mais observável. Eu só queria observar pessoas, não queria conhecer ninguém, abordar ninguém. Não queria experiências. Repelia com maus modos aqueles jovens que nos surpreendem na rua, perguntando se temos tempo, primeiro quinze, depois cinco minutos. Os desprevenidos que cedem são conduzidos para uma sala escura onde acabam a ouvir gente cretina. Se me perguntassem: «Então, porquê andar por aqui todos os domingos, numa zona suja da cidade, a olhar para o nada, a perder tempo?», eu não saberia como responder. Eu andava por ali, todos os domingos, a olhar de facto para o nada, a perder tempo. Mas não via nisso problema. Era o que eu queria fazer. Devemos fazer o que queremos fazer. Todos os domingos, sem que sentisse estar a atraiçoar-me, sem que me violentasse, a minha vida começava no Rossio, perto da estação de comboios. Depois, seguiam-se por esta ordem: Praça da Figueira, Rua Augusta, Terreiro do Paço, Cais das Colunas. Duas a três horas. Uma distância curta, percorrida lentamente, muito lentamente. Gente que passava. Vidas. Destroços de vidas. Alguns vultos. Claro, nada acontecia porque nada era suposto acontecer. Às vezes, nada nos acontece e temos de aprender a viver com esse vazio, sem que isso nos dê angústia ou acédia. Mover-nos todos os dias. Trabalhar. Sentir a passagem do tempo. Suster a inércia. Não esperar demasiado. Conseguir adormecer.
[Pedro Lomba, 1.10.2003]
 

sábado, fevereiro 21, 2004

Pelo aborto decente
Leio, por recomendação de um amigo, a «política à portuguesa» de José António Saraiva no Expresso. É divertido. Há muitos anos que não experimentava.
Gostava de citar, mas não tenho o texto à mão. Há uma coisa que me impressiona muito nos argumentos dos partidários da penalização legal do aborto - em todos, menos os que aspiram à abstinência e acreditam nela. Os outros têm uma fé absoluta no preservativo e na pílula. Podem já não acreditar no dogma da infalibilidade do Papa, mas ainda acreditam na infalibilidade dos métodos anticoncepcionais. Acham, enfim, que quem engravida sem querer tem má-vontade, está de má-fé.
Ora, eu não nego que muito se possa fazer no campo da educação sexual; não nego que muito se possa avançar na difusão dos meios anticoncepcionais a que a Igreja Católica se opõe. Mas convém não subestimar o espermatozóide, o engenho da pequena criatura, o seu desejo por vezes impetuoso de derrubar barreiras, e a ânsia correspondente do óvulo por ser fecundado. Há espermatozóides e óvulos que acreditam mais no seu destino comum do que as criaturas que respectivamente os produziram. Nem espermatozóide nem óvulo têm cérebro, e isso, como é sabido, torna o amor mais provável.
A gravidez acidental é um facto da vida. Acontece, e mais vezes do que se supõe, mesmo a cidadãos íntegros e conscienciosos, infalivelmente racionais e prudentes até à cópula. Mesmo a esses, acontece. Ora, se nós acreditamos - como quase todos nós acreditamos - que o facto de dois indivíduos decidirem ter uma relação sexual não implica necessariamente que assumam a responsabilidade de ter em conjunto um filho - porque não se amam, porque não têm um relacionamento estável, porque mal se conhecem, porque não têm dinheiro, porque são uns miúdos, porque nunca voltam a ver-se, porque não - temos de admitir que o aborto é uma última instância de possibilidade. E que, nessa última instância, que infelizmente ocorre mais vezes do que se supõe, o aborto deve ser seguro, limpo, praticado em higiene, sem censura pública, sem falta de dinheiro e sem clandestinização.
A posição contrária só me parece admissível àqueles que acreditem - para si e para os outros - na abstinência.

Levarei a sério - e estou a falar muito a sério - os argumentos dos que se opõem por princípio ao aborto no dia em que eles deixarem de usar a lei para penalizar quem o pratica. Levarei a sério os anti-abortistas quando eles se colocarem estritamente no campo da persuasão moral, quando não forem cúmplices da clandestinização, quando não chamarem para o seu lado a polícia.
 
Tchau Lomba: traduzir é uma actividade chatíssima
Traduzir é uma actividade chatíssima. Já experimentei e nunca acabo. Traduzir é uma ocupação muito mal paga. Eu tenho um princípio: o salário devia ser proporcional ao aborrecimento que se tem com o trabalho. Custa trabalhar. Se custar muito, deve haver recompensa. Por isso mesmo, os jogadores de futebol deviam ser trabalhadores mal pagos porque jogar futebol é divertido. Os tradutores, pelo contrário, deviam receber balúrdios porque traduzir é uma chatice. Mais uma prova de que o capitalismo não é perfeito.
[Pedro Lomba, 12.10.2003]
 

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

O reaccionarismo nem é o maior problema
Não li muitas das coisas que se escreveram a propósito da entrevista de Luís Villas-Boas ao Público. A indignação que por aí vai é justa, mas seria muito negativo se fosse apenas sinal de impotência, se não fosse mais que desabafo ampliado. Tanto quanto sei, Luís Villas-Boas ainda não foi demitido e isto é intolerável.
Tive o cuidado de transcrever integralmente a entrevista ao Público para aqui porque o assunto é sério e a peça é única. De certa maneira, o que me choca não é tanto o reaccionarismo quanto a estupidez. Quando Villas-Boas diz que «ser lésbica não é ser mulher na plenitude natural do termo» está a proferir um insulto, mas que pode ser minimizado como folclore, uma parvoíce como outra qualquer, uma boutade à Alberto João Jardim. O preconceito contra os homossexuais ainda é, de tudo, o que me assusta menos – amplos sectores do conservadorismo, incluindo a hierarquia da Igreja Católica, praticam-no.
O que me impressiona, o que me abisma, o que me causa vertigens é a estupidez, a estupidez alardeada a partir de uma posição de poder. Ou melhor: de duas – Villas-Boas fala como presidente de uma Comissão do Estado e como psicólogo. É com legitimação supostamente científica que elabora sobre distorções à sexualidade original das crianças, comenta o direito dos homossexuais a adoptar como sendo uma «perversão», teoriza sobre o «carinho falso», que não é «organizado», não é «estruturante», disserta sobre a «infelicidade».
A estupidez de tais pronunciamentos desmonta-se numa frase muito simples. Como escreveu Tiago Barbosa Ribeiro:

Se a «comunidade científica mundial sabe hoje que não existe homossexualidade genética», também sabe hoje que não existe heterossexualidade genética: ou filhos de heterossexuais nunca seriam homossexuais.

É tudo tão simples e tão óbvio como isto. Por isso penso que a indignação contra estas coisas, a revolta, não pode, não deve, ser primordialmente um combate de orientação ideológica.
Como se demonstra mais uma vez, um psicólogo burro ou transtornado da cabeça é um indivíduo muito mais perigoso que outro burro qualquer.
 
Tchau Lomba: nenhuma palavra é intranscendente
Fico uma hora para escolher apenas três palavras, três adjectivos. A escolha de uma palavra é um comprometimento sério, um embaraço pleno de consequências. Somos expostos mais do que queremos. Nenhuma palavra é intranscendente.
[Pedro Lomba, 9.10.2003]
 
Tomé ao Parlamento
[na morte de Acácio Barreiros]

Os ricos que paguem a crise
Para que o povo seja livre há que reprimir os fascistas
Imperialistas fora de Portugal

Por mais anacrónicos, os slogans não perderam a força.
 

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Título
É um grande paradoxo que se ache que é igual aos filmes anteriores de Woody Allen um cujo próprio título é Outra Coisa Qualquer.
 
Anything else


Jerry Falk: «I was just wondering how strange life is, how full of inexplicable misteries.»
Taxista: «Well, you know... It's like anything else.»

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
[de Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos]
 
Tchau Lomba: esteta mas não é só isso
A má escrita arrepia-me, confunde-me. Nos jornais, nas universidades, nos textos legislativos, a prosa baça, cambaleante, sem ritmo, sem nada, deixa-me angustiado. Quando eu próprio escrevo mal, fico deprimido uma tarde inteira. Chamam-me esteta mas não é só isso.
[Pedro Lomba, 24.6.2003]
 

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

Isto não é uma piada
Luís Villas-Boas, presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção portuguesa, afirma que mais vale uma criança passar toda a vida numa instituição ou em famílias de acolhimento à «infelicidade de ser educado por homossexuais, sejam dois ou um».
Reagindo à decisão espanhola de permitir a adopção de duas crianças por um casal de lésbicas, afirma-se respeitador do direito ao livre exercício da sexualidade; sublinha é que tal não significa dizer que se trata de «um comportamento normal». Face a legislações que permitem a adopção por homossexuais, considera que «é uma perversão o que se passa nalguns pontos da Europa», nomeadamente na Holanda. «É demasiado grave o que se está a passar no mundo», defende Villas-Boas, que é psicólogo clínico e director do Refúgio Aboim Ascensão, em Faro.
Deixar que a criança cresça em «ambiente homossexual» tem consequências que devem ser evitadas, nota. «A comunidade científica mundial sabe hoje que não existe homossexualidade genética»; assim, uma criança que seja educada em ambiente homossexual tenderá «a interiorizar atitudes, aprendizagens, reacções do ambiente onde está», afirma.
Villas-Boas é peremptório quando diz que «a criança não deve nunca ser adoptada por homossexuais», porque tal irá interferir com a sua «sexualidade natural». «Tudo o que seja induzir comportamentos que não correspondem à sua condição sexual é um atentado ao direito das crianças», considera. «A adopção é um veículo do exercício do direito à família de uma dada criança», mas «qualquer criança também tem direito ao exercício da sua sexualidade original». Antes de tudo, considera, está «o primado do direito da criança à sexualidade genética»: se for mulher, tem direito a ter filhos, a procriar; o homem tem direito a ser pai. Criar crianças em «ambiente homossexual» é «interferir com o normal percurso do exercício dessa mesma sexualidade». «Ser lésbica não é ser mulher na plenitude natural do termo, porque se assim fosse não haveria o problema da procriação natural», acrescenta.
Villas-Boas vê o carinho transmitido por homossexuais como «um carinho falso. Não é carinho organizado, estruturante - gostam deles próprios através da criança», afirma.
O psicólogo lembra que, em Portugal, a lei das uniões de facto, aprovada há três anos, exclui homossexuais e que a proposta do Bloco de Esquerda que propunha a adopção por casais homossexuais foi chumbada no Parlamento no Verão passado.

[Do Público]
 
Adeus ao cabelo na parte da frente
Queixo-me de estar a ficar sem cabelo. Houve um tempo em que todos me gozavam quando falava nisso. Agora falo com pesar da minha perda de cabelo, procuro o exagero, e ninguém põe em dúvida. O exagero é útil: uma vez que ninguém mo diz, é assim que descubro a calamitosa dimensão da realidade.
(«Calamitosa»: outro exagero. Espero.)
 
Partir
Entre, digamos, 1989 e 1996, fui político. Depois, anunciei que me reformava da política aos 23 anos. Ninguém acreditou. Já passaram quase dez e gostava que me dessem crédito por isso. Não é questão de ter cumprido uma promessa; era só que reconhecessem que às vezes, contra todas as aparências, as nossas intuições estão certas. Não era um intervalo, uma indisposição temporária, uma «desarmonia com o elemento». Às vezes é mesmo altura de pegar nas coisas e partir.
 
Já li
Recebo, pela milésima vez, um email para assinar a revista Manifesto que sugere que ainda não o fiz porque sou «distraído». Distraído é, como diriam os brasileiros, «apelido». Eu fui director da revista Manifesto, que aliás era um jornal, na sua primeira encarnação, há pouco mais de dez anos. Muitas das pessoas que lá estavam são as que ainda lá estão. A muitas – às vezes parece que a todas, mas se calhar só a muitas – faz imensa confusão que não me interesse assinar uma revista de que em tempos fui director. Parece que fiquei ressabiado mas ninguém sabe exactamente com o quê, nem porquê durante tanto tempo.
Mas não é a velha história de não voltar a um lugar em que se foi feliz (?). É mais simples, mais linear e por isso mais difícil de explicar às pessoas, sobretudo às que não lêem A Praia: as coisas mudam. O que me faz falta não é ler o que já li.
 
Fracassar como o Lomba
Eu também estava a fazer a minha selecção de posts do Pedro Lomba. Mas não dá. São quilos, e não é só isso: aquele blog tem uma história, uma sequência, uma narrrativa. O Pedro Lomba, se encerra a loja, devia publicá-la. Mas não o vai fazer, porque não será capaz de se dedicar àquilo, de ler aquilo e – aqui para nós –, se fosse caso disso, de fracassar com aquilo.
 
Rimas
Coitado do André
Gostava de escrever na Praia
E escreve no Barnabé
 
Tchau Lomba: fracassar é muito mais difícil
Se tivesse coragem, digo-vos que fracassaria com afinco todos os dias. É muito mais saudável perder do que ganhar. Ganhar é um luxo, uma embriaguez fácil, uma descaracterização. Fracassar não é nada disso. Fracassar é muito mais difícil, muito mais exigente e muito mais conservador do que ganhar. É a única utopia conservadora em que eu acredito: a utopia do fracasso. Tenho há muito tempo esta certeza e não me peçam para explicar: o mundo será melhor no dia em que for universalmente feito de fracassados.
[Pedro Lomba, 30.6.2003]
 

terça-feira, fevereiro 17, 2004

Bandalho
 
O penalti
Quando o penalti é apitado no último minuto do prolongamento de lei, e impede a vitória de um visitante no templo do visitado, então, senhores, passa-se de polémica a perseguição, de erro a propósito, de um jogo ao maniqueísmo. Então, o que a guerra não suscita, o que a má medicina não provoca e o que o crime violento não desperta revela-se em todo o seu esplendor: a indignação.
Os de Valência estão indignados porque no último suspiro do encontro com o Real Madrid, em casa deste, foi marcado um penalti por falta do defesa Carlos Marchena ao dianteiro Raul González. «Uma falta muito rigorosa», diz a comunicação pública espanhola, quando o que aconteceu não foi falta. A preocupação de equilíbrio dos meios públicos leva-os a esquecer a notícia: a inexistência de falta.
[do excelente artigo de Nuno Ribeiro, como todas as terças]

Quem deseja do futebol apenas o que gostaria de ver em si ou no Homem ou é parvo ou está a perder muito do que de melhor o futebol tem para nos dar: o mais benigno mecanismo social de exploração e escape dos verdadeiros limites físicos e psicológicos com que a natureza brindou o Homem. Quem sentencia como estranho ao futebol a maldade, a mentira, a raiva, o ódio, o irracional, a inveja, o ciúme, ou tudo aquilo que não nos agrada nos outros, em nós próprios, ou não convém à boa vida em sociedade, não é um verdadeiro amante de futebol, sequer do desporto. Para esses, para a RTP e para o José Rodrigues dos Santos, aconselho um qualquer acampamento de escuteiros. Nota: juro por Deus que não ando a ler Nietzsche; li uma vez umas partes de “Para a Genealogia da Moral”, mas a única coisa de que me lembro é que não percebi nada.
[do excelente post de maradona, periodicidade irregular]

O Pedro Lomba foi-se embora mas sabendo muito bem que do Nelson Rodrigues não faltam herdeiros.
 
Cartas de amor
Quando vi que o Lomba ia apagar o blog fui imediatamente aos arquivos. Pensei seleccionar e copiar o que quero. Ontem li Junho e Julho, mas um bocado a correr e isso irritou-me. Então descobri que o melhor era escrever-lhe a seguinte mensagem:

Pedro,
Não há nada do teu blog que eu queira copiar e guardar. Só por isso é estupidamente presumido anunciares com antecedência que vais apagá-lo. Toma. Podes apagar já hoje, for all I care.

[de um email]
 
Tchau Lomba: esta verdade evidente e descarada
Vejo-me muitas vezes diante desta página como no papel. Em tudo o que fazemos, existe uma solidão discretamente inelutável, feita das dificuldades que nos propomos resolver. Expressar-nos o melhor que pudermos. Acreditar que o podemos fazer sem custo. (...)
Como todos os transcendentalistas, Emerson exagerava nesse culto das potencialidades do eu. Eu posso acreditar que o mundo, a História, a natureza, a súmula de todas as ideias, confluem na minha cabeça. Posso acreditar que basto, que me basto, que não preciso de mais nada (e a seguir construo uma casinha num sítio recôndito). Posso acreditar que a auto-afirmação é tudo. Os blogues podem ser um pouco assim porque a função dos blogues é pôr-nos a escrever e a alimentar um diário público (...). A função dos blogues, tão pequena, é essa. Não é outra. Fora disso, temos um imenso mundo onde é pouca coisa dizermos: «Isto sou eu porque sou eu» ou «Esta é a minha identidade» ou «Vejam o que eu tenho para dizer». E, no entanto, apesar disso, temos esta verdade evidente e descarada: as sociedades, e sobretudo as sociedades liberais, precisam de cidadãos felizes, se quiserem de cidadãos satisfeitos.
[Pedro Lomba, 8.7.2003]
 
Tchau
Nos próximos dias terei aqui uma secção intitulada «Tchau Lomba» com posts do dito que ele pretende apagar. «Tchau Lomba» pode parecer um título de homenagem estranho a um indivíduo tão ocupado com a forma. Mas tenho a impressão de que é correcto. Encher um texto de pontos de exclamação é em geral uma manifestação de analfabetismo. Escrever «Tchau Lomba» parece denotar fracos recursos linguísticos. Mas, se levassemos o Lomba demasiado a sério, não estaríamos a levá-lo a sério. E não o levar a sério (a ele como ao patrono dele, Nelson Rodrigues) seria não apenas uma grande estupidez mas sobretudo uma grande injustiça. Às vezes no exagero procura-se o rigor, não a verdade literal.
 

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Para que serve a blogosfera
O sacana do Lomba vai-se agora embora. Chamo-lhe sacana afectuosamente. Quando eu era puto, o meu avô chamava-me «sacana», outras vezes «cabrãozinho». Na verdade, eu preferia «cabrãozinho», mas não tenho a certeza que o Lomba aprecie se eu lhe chamar isso.
Em Junho do ano passado «Pedro Mexia» era para mim apenas um nome, vagamente associado a elogios do Eduardo Prado Coelho numa página de sábado que eu nunca leio, à direita salazarista e a uma fotografia de corpo inteiro com um ar louro e teutónico numa dessas páginas. «Pedro Mexia» era um nome que não me interessava nada. «Pedro Lomba» nem isso: era um não-nome, ou um nome vazio.
Quando, em Agosto, o Lomba anunciou pela primeira vez que se retirava da blogosfera - mas não que apagava o blog -, recebi no Rio de Janeiro um email alarmado da minha irmã: «já viste o que fez o Lomba?» Hoje a minha irmã está grávida de oito meses e não lê blogs. Talvez a ingratidão da minha irmã - que o Lomba não conhece - como leitora possa ser associada a este encerramento. Acho chato que ela não vá mandar-me nenhum email alarmado a este propósito.
Em Agosto passado o Lomba era um dos meus (dois) bloggers preferidos, uma pessoa que eu imaginava com quarenta anos. Hoje é um rapaz de 26 com quem eu troco sms e por vezes almoço. E é uma pessoa com quem sensível e visivelmente tenho uma afinidade que não é predominantemente teórica nem abstracta.
Ah: é um rapaz de direita. Mas nem tanto. Às vezes tem razão. Outras vezes é de direita.

Ao meu lado direito tenho um vidro em que o meu rosto se reflecte mas a pouca luz. A pouca luz é apenas a do ecrã do computador (nunca faço isto; dá cabo dos olhos). Olhando-me ocasionalmente nesse vidro vejo uma cara mais velha do que eu gostaria de ver, uma barba mais hirsuta do que eu gostaria de ter, mais olheiras e um ar mais cansado. Nada disto se deve propriamente a uma vida extenuante. O Pedro Lomba é mais novo e parece mais novo que eu – tirando nos dias em que veste gravata e sobretudo para dar aulas na Faculdade de Direito de Lisboa. O Pedro Lomba tem, felizmente para ele, menos olheiras, menos barba e os olhos menos baços do que os meus. Acho que o Pedro Lomba também se olha por vezes nos vidros que o reflectem à procura dos próprios olhos. Em parte o blog trata disso mesmo; aliás, foi ele que o disse, «growing up in public».

Como acho que já escrevi uma vez, há dias em que se escreve e dias em que não se escreve, e as razões para isto são as mais misteriosas. Isto dito assim parece muito simples, mas a não-escrita é uma grande angústia. A questão essencial não é apenas ter alguma coisa para escrever, mas ter alguma coisa que se queira escrever.
O blog é uma coisa muito pouco livre: é talvez a coisa mais livre de todas. Nenhuma liberdade é absoluta e esta, que é provavelmente a mais próxima que conheço, fica ainda muito longe. Mas estou-me a ver a tomar a decisão do Lomba, a fechar o blog para não o ter sem novidades durante vários dias, para não me ver a escrever coisas que não quero, e a partir daí precisar de um blog para experimentar o que não se escreve nos jornais, nem nas universidades, nem nos diários íntimos, nem nas cartas para os amigos.
O melhor é o Lomba, quando lhe apetecer, mandar para aqui um post, que eu publico-lho. Fiquei chateado com a decisão dele e sobretudo com a ideia de apagar o blog, mas há momentos em que a gente aceita até o insulto para guardar um amigo.
É mesmo: a gente até finge que não ouve um insulto quando quer mesmo guardar um amigo.
 
Ignição à esquerda
O carro apareceu, intacto, com praticamente tudo o que lá estava e ainda enriquecido com alguns CDs, 2 pares de calças, vários pares de peúgas, pulseiras com a Nossa Senhora, etc. Devolvem-se a quem provar que lhe pertencem.
Entretanto, agradeço os dois emails que recebi revelando compreensão e solidariedade para com o ex-proprietário de um Alfa 33.
 

domingo, fevereiro 15, 2004

O poder passeando-se incógnito às cinco da tarde
Adelino Gomes no Público protesta por em nenhum dos quatro canais televisivos ter sido noticiada a conferência que proferiu na sexta-feira na Gulbenkian o sociólogo catalão Manuel Castells, autor de três grossos volumes sobre a «era da informação» traduzidos em português. Também me esqueci de ir à Gulbenkian. Lá, Castells disse, entre outras coisas, que «a principal fonte do poder dos Estados Unidos são as suas universidades».
Ontem à tarde Castells, um dos académicos mais famosos do mundo, passeava no Chiado como um turista em pleno anonimato. O poder está nas universidades, não nos universitários.
 

sábado, fevereiro 14, 2004

Reflexões sobre a vida universitária, em especial numa pequena cidade de província

Monty Python, Ministry of the Silly Walks

Na carreira universitária há várias provas importantes, mas uma delas é indubitavelmente fundamental – o doutoramento. No caso concreto de Coimbra, a partir daí o docente universitário tem a condição necessária para começar a usar insígnias. Necessária, mas não suficiente. A tradição manda que volte a passar pela Sala dos Capelos para que lhe sejam solenemente impostas essas insígnias.
A cerimónia de imposição de insígnias a um doutor é uma espécie de doutoramento «Honoris Causa», já que o protocolo é praticamente igual. Também há o cortejo, o «padrinho», os elogios ao candidato e ao «padrinho», a entrega da borla, do anel e do livro feita pelo Presidente do Conselho Directivo da Faculdade. Frequentemente, juntam-se vários doutores e fazem a cerimónia em conjunto. A festa pode ser um pouco mais demorada, mas não por causa dos discursos, uma vez que o bom senso aconselha a que se reduzam os elogios. (...)
Está (...) a aumentar o número de doutores sem insígnias. Isso nota-se cada vez mais na Sala dos Capelos, onde, nas mais importantes cerimónias, se sentam lado a lado doutores com insígnias e doutores sem insígnias. Este facto chegou a criar problemas de melindre quando em cerimónias muito concorridas havia doutores sem insígnias nos cadeirais e doutores, mais antigos, de Faculdades mais recentes, com insígnias há muitos anos, em baixo, na «teia». Pouco depois de ter tomado posse como Reitor em 1998, senti-me triste ao ver professores dos mais antigos saindo da Sala porque, pela primeira vez, não tinham conseguido lugar nos cadeirais. Para evitar que isso voltasse a acontecer, levei logo a Senado, e com êxito, uma proposta de proporcionalidade «mitigada» de doutores por Faculdade que permitia a representação de todas as Faculdades nos cadeirais, em caso de cerimónias com grande afluência de doutores. Graças à quota aprovada para cada Faculdade e porque os doutores se sentam consoante a sua antiguidade, os mais antigos ficam sempre nos cadeirais. (...)
Nos desfiles de professores em que estive envolvido, fosse na Itália, fosse na Inglaterra, com doutores de vários países, cada qual com as suas insígnias, as nossas eram especialmente apreciadas pela riqueza da sua elaboração. (...)
As praxes académicas estiveram esquecidas durante alguns anos. Doutorei-me na Sala dos Capelos em 1975, de fato e gravata... Só mandei fazer a capa e batina em 1978, quando as praxes estavam a regressar por influência do então Reitor, Prof. Ferrer Correia. Mas as imposições de insígnias demoraram a instalar-se de novo com alguma frequência. Como em 1985 tive de usar insígnias para discursar num doutoramento «Honoris Causa», fiquei automaticamente dispensado da cerimónia. Há muitos casos como o meu, registados em livro próprio.

[Transcrição ampla do artigo assinado pelo ex-Reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Rebelo, no diário As Beiras de 10 de Fevereiro de 2004, com o título «Reflexões sobre a vida universitária» e o subtítulo «45. As imposições de insígnias», o que me faz supor que se trate de uma coluna semanal numerada em que o autor tenha já tratado antes de outros 44 temas da academia coimbrã de importância comparável a este.]

Não farei grandes comentários. Só assinalo que nos lugares mais insuspeitos o período da Revolução nos surge como o breve intervalo da lucidez.
 
15 de Fevereiro de 2003
Sou dado a fixar datas e a assinalar efemérides para além do razoável. Eis uma: passam hoje 52 semanas que decorreu, por todo o mundo, a maior manifestação contra a guerra do Iraque. Em Lisboa estava um dia magnífico de sol como o de hoje, uma antecipação de primavera como a de hoje, e muitos milhares de pessoas fazendo um percurso muito mais bonito que o habitual: Chiado - Cais do Sodré - Praça do Comércio - Rossio. Para celebrar a efeméride, convidei para almoçar dois conhecidos partidários da guerra - mas não lhes lembrei a ocasião. Vou poder dizer-lhes assim:

Qualquer debate sobre a «mentira» ou o «engano» acerca das armas de destruição iraquianas é provavelmente ocioso. «A posteriori», qualquer «mentira» pode ser reconstruída como um «engano».
Seria bom que nos entendêssemos, pelo menos, sobre uma coisa. Não há juízo possível sobre a invasão e ocupação do Iraque que não seja um juízo político sobre as decisões e posições tomadas. O resto é um jogo de espelhos, de hipóteses que não podem ser testadas empiricamente, parte de um esforço para deflectir responsabilidades políticas e reescrever a história. E esta, por muito que nos custe simplificar o que é por natureza complexo, teve, em última análise, um lado certo e um lado errado. Não são precisos inquéritos para sabermos quem esteve onde e quando.

A vocês não convido para almoçar, mas para ler o resto - que está, como é óbvio por ser costume, no texto do Pedro Magalhães. (E onde terá estado ele nesse sábado de sol?)
 
Amigos como dantes
Que sou eu para quem me escreve? Às vezes, um amigo imaginário.
 

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Dia dos namorados
Nem sei em que dia é... Nunca tive uma namorada em Fevereiro e no dia dos namorados. As minhas relações só costumam durar um mês. Se tivesse namorada comprava-lhe uma prenda.
[Miguel Gomes, estudante, 48 anos, ao Público]
 
Um Alfa Romeo


Podia contar aqui uma grande história sobre a minha relação com os carros que já me passaram pelas mãos. Ia ser enfadonho para todos. So, to cut a long story short: tive um Alfa Romeo 33 (1.5) vermelho entre 1995 e 2000. Antes disso ele era do meu avô e depois disso passou para o meu pai. O carro não era objectivamente tão bom como o que eu guio actualmente, e por isso pareceu-me sensato desfazer-me dele, mas ao mesmo tempo tinha-lhe muita estima e por isso agradou-me que ficasse na família. Os carros hoje têm todos injecção electrónica e são mansinhos, mesmo quando são potentes, mas um Alfa 33 é um carro que se sente acelerar no momento em que carregamos no pedal, e dava-me especial prazer fazer curvas com ele (exacto, é verdade: «de noite na estrada de Sintra»). Quem teve um Alfa Romeo desses conhece-lhe, além disso, o som do motor.
Esse carro, com a matrícula QC-53-10 foi agora roubado, na noite de quarta para quinta-feira, na Estrela, em Lisboa. O carro já é de 1988 e por isso está a ficar velho, mas foi muito bem estimado e eu, pelo menos, ainda gosto muito dele. Parece que o meu pai também lá tinha dois sacos com livros que, pelo menos isso, gostava de reaver.
Eu sei que estes anúncios são um bocado inúteis, mas se alguém o vir pode dizer-me qualquer coisa, e se não vir sempre serve para eu fazer o meu luto.
Por 1995 o carro - um Alfa Romeo vermelho, seja ele qual for, é sempre um símbolo burguês - tinha no vidro da frente um autocolante com aquele desenho do João Abel Manta de 1974, «MFA, Povo, Povo, MFA». O autocolante era muito bonito e eu achava que ia muito bem com o carro. Infelizmente, escusam de o procurar, porque algum mecânico com consciência política de direita removeu-me do vidro há anos atrás.
 

terça-feira, fevereiro 10, 2004

Sitemeter
Em Julho passado terminei umas provas académicas, dois textos, um de cerca de cem páginas, outro de umas vinte ou trinta. Esta noite sonhei que alguém as teria lido.
 
Manhã
Realmente a diversão é sobretudo a gente ser capaz de pensar, de funcionar mentalmente. (...) não se trata doutra coisa senão de brincar com o pensamento. (...) pensar e sonhar é a mesma coisa (...).
[João dos Santos, p.36]

[esse] pensamento que parece que não pensa, (...) é com ele que se descobrem todas as coisas importantes da vida.
[João Sousa Monteiro, p.201]

[João dos Santos (com João Sousa Monteiro), 1988, Se não sabe porque é que pergunta?, Lisboa: Assírio e Alvim]
 

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

Um universo fechado - e em expansão

Woody Allen em AntZ

De cada vez que Woody Allen fizer um filme novo, haverá sempre um idiota para proclamar que se trata do «regresso» do realizador às suas comédias dos «bons velhos tempos». Haverá também outros, suficientemente sensatos para não fazerem semelhantes descobertas, que se limitarão a manifestar o seu enfado pelo carácter repetitivo da obra do realizador. Mas parece-me que faz mais sentido comparar a obra de Woody Allen ao discurso de um paciente ao longo da psicanálise: de tempos a tempos, os mesmos temas, os mesmos problemas e as mesmas obsessões reaparecem; no entanto, nunca são formulados da mesma maneira, nem no mesmo contexto, nem dizem nem querem dizer precisamente a mesma coisa. Um filme de Woody Allen de 2003 está trinta anos distante de um filme de Woody Allen de 1973, não só no plano do facto mas porque ele passou trinta anos a mastigar os mesmos temas, as mesmas obsessões.
Esta imagem da análise parece-me que faz especial sentido em relação a Anything Else. O filme introduz uma novidade muito significativa no universo de Woody Allen. Não é a primeira vez que o actor que encarna «a personagem de Woody Allen» é outro que não o próprio Allen: já aconteceu com Kenneth Branagh em Celebrity (1998) e até com o boneco animado de AntZ (1998), um dos meus filmes preferidos «de» Woody Allen dos últimos anos, em que a formiga Z era o próprio Allen. Mas é a primeira vez em que «a personagem de Woody Allen» entra pela mão de dois actores diferentes, com dois papéis diferentes, no mesmo filme. Jason Biggs é «Woody Allen», o «Woody Allen clássico», que vai ao psicanalista, passa a vida desorientado pelas mulheres e vive obcecado com a morte; mas Woody Allen também é «Woody Allen», um personagem mais velho, uma outra faceta de Allen, que no filme só existe enquanto amigo e confidente do primeiro.

E o que diz, basicamente, o Allen-velho ao Allen-Biggs? Diz-lhe, a todo o momento, que ele tem que largar o lastro, tem que deixar o seu agente profissional inútil, a rapariga por quem vive obcecado e que faz dele gato-sapato, o psicanalista de quem está dependente, deixar tudo e até Nova Iorque e partir para a Califórnia. Numa frase só, Allen-velho diz a Allen-Biggs para escolher a vida em detrimento da análise; para viver, e não obcecar permanentemente a pensar nisso. Esta ideia é sublinhada em várias passagens do filme, mas sobretudo pelo contraste entre as conversas de Allen-Biggs com o seu psicanalista – um psicanalista que nunca tem opinião sobre nada e que só abre a boca para decretar o fim da sessão ou para devolver as perguntas do seu analisado – e as conversas, que por vezes aparecem imediatamente a seguir, em que Allen-Biggs põe as mesmas questões ao Allen-velho e este, pelo contrário, não dá senão conselhos e até ordens sobre tudo o que o mais novo deve fazer na vida para se libertar, ser ele próprio e, em última instância, ser feliz. O Woody Allen mais velho também já esteve na psicanálise, até ao dia em que, perante o cretinismo do psicanalista, lhe enfiou com um extintor na cabeça.
Temos portanto dois Allens, pela primeira vez, no mesmo filme. O Allen-velho diz ao Allen-Biggs, ao Allen «clássico», que se liberte das suas obsessões, que perca o medo, que viva a vida. Será que temos, então, Woody Allen contra Woody Allen, contra aquilo que Woody Allen sempre foi? Creio que não. Allen-velho e Allen-Biggs são a mesma pessoa: trata-se de um diálogo interior de uma mesma pessoa em pontos distintos do caminho. E quando, no final, Allen-Biggs se liberta simultaneamente do lastro (da namorada, do psicanalista, etc.) e do Allen-velho, o filme acaba, porque o Allen que começa aí é outro Allen, um Allen-síntese. Dá vontade de dizer que à medida que a vida de Woody Allen caminha para o fim, o seu trabalho de análise também caminha para o fim, e o que começa a ser-nos proposto é a porta de saída.

Este filme não é um dos meus favoritos de Woody Allen: o mecanismo de pôr Biggs a falar para a câmara parece-me cansativo, a personagem de Christina Ricci é muito menos interessante que mulheres anteriores em filmes seus e pareceu-me haver, em alguns momentos, um excesso de «piadas». No entanto, o filme coloca, como quase sempre, questões muito interessantes - e novas. O ponto-chave, a meu ver, é que a obra de Allen nunca será compreendida filme-a-filme: nenhum filme dele é, estritamente falando, uma obra-prima, porque nenhum é obra de síntese. O que Allen vai fazendo, ano-a-ano, filme-a-filme, é o seu trabalhinho de análise, o amadurecimento da sua reflexão interior que ao mesmo tempo só existe enquanto prática, isto é, enquanto coisa real, trabalho realizado, filme. As obsessões são recorrentes, mas o ponto em que estamos na reflexão sobre elas nunca é o mesmo.
 

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Fechado no universo com Allen
Vou ao cinema com regularidade desde para aí os meus nove ou dez anos. Creio que desde então nunca perdi nenhum filme do Woody Allen. Penso também já ter visto todos os anteriores. Um dos resultados disto é que a minha memória de alguns filmes - por exemplo, Zelig (1982) - não é recente, mas muito antiga. Outro dos resultados é que a minha apreciação dos filmes de Woody Allen é o produto de muitos anos de «convívio», atravessando toda a minha vida, e não de um estudo sistemático feito num momento particular. Não deve ter havido um único ano civil em que cinema não tenha significado pelo menos uma vez Woody Allen, e acho que isto diz tudo.
Os cinéfilos portugueses - não sei se é um fenómeno português ou internacional - não levam a sério Woody Allen como cineasta. Bénard da Costa, creio, nunca lhe dedicou uma única linha; e a Cinemateca não lhe dedica ciclos, e muito menos homenagens. Pois bem, na minha gloriosa imodéstia acho que que estão errados: que Woody Allen tem uma absoluta obra-prima - A Rosa Púrpura do Cairo (1985) -, uma boa meia-dúzia de filmes extraordinários e que daqui a cinquenta anos ainda será uma referência cultural incontornável. Manhattan (1979), Ana e as Suas Irmãs (1986), Everyone Says I Love You (1996) e Maridos e Mulheres (1992) são provavelmente os meus favoritos, sendo certo que por causa de memórias antigas posso estar a cometer alguma injustiça. Por outro lado, por muitas voltas que lhes dêem Interiors (1978) e Hollywood Ending (2002) serão sempre duas inteiras, plenas e rematadas porcarias.
 
Só «Woody Allen» é Woody Allen
O Woody Allen é provavelmente o único indivíduo do mundo que perde mais tempo do que o Pedro Mexia a explicar que o personagem que encarna (nos filmes) não é aquilo que ele na realidade é enquanto pessoa. No entanto, pelo contrário, sinto-me tentado a dizer que só o «Woody Allen» é que é o Woody Allen. Talvez seja totalmente irrelevante conhecermos o artista fora da obra num caso em que a obra é o desenvolvimento ao longo de décadas dos problemas e dos fantasmas que povoam a cabeça de um personagem. Só a personagem «Woody Allen» existe; o Woody Allen come, dorme, paga as contas e atura a mulher, mas nos filmes não faz outra coisa que não re-criar-se a si mesmo. O pior filme «de» Woody Allen é o documentário sobre ele, Wild Man Blues (1998), de Barbara Kopple, um filme realmente horrível, porque não é Allen a pensar sobre si próprio, mas exposto nos seus tiques a partir de fora.
 
No universo fechado de Allen

Christina Ricci em The Opposite of Sex

Helen Hunt, Dan Aykroyd, Melanie Griffith, Charlize Theron, Winona Ryder, Sean Penn, Elizabeth Shue, Robin Williams, Kenneth Branagh, Demi Moore, Hugh Grant, Billy Crystal, Tobey Maguire, Edward Norton, Drew Barrymore, Natalie Portman, Lukas Haas, Goldie Hawn, Julia Roberts, Tim Roth, Mira Sorvino, John Cusack, Juliette Lewis, Liam Neeson, Madonna - esta é uma lista de alguns dos actores do star-system americano que Woody Allen usou em pouco mais de dez anos.
Nenhum deles tem uma imagem que em princípio estejamos preparados para associar ao universo neurótico, intelectual, fechado, dos filmes de Woody Allen. E no entanto, e mesmo sem que lhes pague mais do que o mínimo obrigatório estipulado pelo sindicato, todos os anos ele aproveita para subverter as nossas categorias sobre cinema «intelectual» e cinema de massas, os nossos estereótipos sobre ele mesmo, dando-nos mais surpresas. Desta vez, Jason Biggs - de American Pie - e Christina Ricci. Nem sempre são grandes actores mas não importa, porque ser dirigido por Woody Allen e actuar mal é muito difícil: acho que até hoje só Julia Roberts esteve realmente perto de realizar a proeza.
 

terça-feira, fevereiro 03, 2004

Zero de eficácia
244 pessoas morreram durante o apedrejamento de Satanás. Satanás, porém, saíu incólume.
 
Dissuasão


Com bolas de neve ou sacos de água, os absurdos da dissuasão são um dos temas favoritos do Calvin.
 
Amigos do aborto
Há muito tempo que não via nada tão bárbaro como o que me foi dado ler num dossier do Público de ontem sobre o trabalho de algumas associações religiosas no «apoio» a mulheres que abortaram.

(...) O luto pela criança que não nasceu é importante, concorda Claudia Muller, da "Vinha de Raquel", um projecto de retiros para mulheres que tenham abortado, da responsabilidade do Serviço Diocesano da Defesa da Vida, do Patriarcado de Lisboa.
«Quando uma criança morre é preciso fazer o luto. É preciso exteriorizar este sentimento e estabelecer uma relação com aquela criança, dando-lhe, por exemplo, um nome», adianta ainda. Nos EUA, de onde o projecto "Vinha de Raquel" é oriundo, há até quem faça lápides com o nome do bebé.
O projecto procura sobretudo que a mulher tenha «noção plena que houve uma morte e que permitiu que essa acontecesse», sublinha Claudia Muller. Para a responsável pelos retiros essa «noção de culpa» é essencial para «enfrentar a realidade» e é o «primeiro passo para a libertação». «Depois, há que tentar trabalhar a situação no sentido de não negar o que se passou, nem desculpabilizar.

Num outro texto no mesmo jornal, relata-se que
em 2001, o psiquiatra Álvaro Carvalho fazia um balanço sobre os "Aspectos Psicológicos da Interrupção Voluntária da Gravidez" e, na ausência de estudos portugueses, analisava os trabalhos feitos na Grã-Bretanha e nos EUA, na década de 80, e concluía que «não é comum registarem-se sequelas emocionais significativas nas [mulheres] que a concretizam [à IVG], em registo legal, em particular durante as 12 semanas de gestação».
(...) Segundo um estudo feito no Reino Unido, as consequências negativas são mais comuns em mulheres «com atitude ambivalente em relação à IVG, por motivos morais e religiosos».


Para evitar equívocos, esclareço duas coisas. Primeiro: este meu post não é sobre a despenalização do aborto. Embora os defensores da ilegalização teimem em não o entender - e esse equívoco tenha consequências trágicas -, o plano da lei e o plano da moral são diferentes. Este tipo de selvajaria continuará a existir mesmo no dia em que se tenha estabelecido o mínimo de decência que é a despenalização do aborto.
Segundo: estou certo de que a esmagadora maioria dos partidários da penalização ficará tão chocada como eu perante estas barbaridades. Um dos problemas desta selvajaria - como do aborto, hélas - é que, mesmo que nos repugne muito, não pode ser erradicada por nenhuma lei que não traga infinitamente mais inconvenientes que vantagens. Teremos por isso que a combater sem a ajuda da lei.
 

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

O mistério

As mulheres são anjos, putas, bonecas insufláveis, mártires-avé-maria, objectos de desejo-culto obsessivo, musas intocáveis, um mistério

«As mulheres não são nem anjos, nem putas, nem caniches, nem bonecas insufláveis, nem mártires-avé-maria, nem musas intocáveis, nem objectos de desejo-culto obsessivo. Não são um mistério, uma coisa que precisa de ser explicada, ou uma subespécie», diz o Miguel Vale de Almeida a propósito do In the Cut.
Não gostei nada do filme, como não gosto nada do que a Jane Campion fez desde (e incluindo) O Piano, mas saí do cinema a pensar uma coisa parecida, ou talvez simétrica: não deixa de ter a sua graça, por uma vez, ver os homens representados como personagens bidimensionais, sem densidade nem existência própria, todos uns sacanas e ao mesmo tempo irresistíveis, exceptuando um preto muito grande que é tão bonzinho e compreensivo quanto é de género sexual indefinido. Porque a verdade é que quase todos os meus filmes predilectos - de Lolita a Basic Instinct - andam à volta de mulheres que, por artes misteriosas que não passam propriamente pela inteligência nem sequer pela humanidade, dominam tudo. E no meio delas só as que são mesmo putas é que são boazinhas.
In the Cut não se redime por isso, mas dá para pensar na cegueira recíproca. Gostamos muito uns dos outros. Só não nos vemos.
 
A gritaria
Uma semana depois da morte do Fehér, o que me fez mais confusão em tudo isto foi o contraste entre o absoluto silêncio, que me parece normal, das pessoas nas cerimónias fúnebres na Hungria e a gritaria de jogo de futebol com que os portugueses, no velório e à volta dele, resolveram manifestar a sua dor.
A boçalidade em si já raramente me surpreende - mas que haja alguma coisa de especificamente português nela é que acho estranho e inquietante.
 

domingo, fevereiro 01, 2004

Informações Pouco Fiáveis
Por Ana Sá Lopes
Público, 01 de Fevereiro de 2004

Lord Hutton, responsável pelo inquérito que "absolveu" Tony Blair da acusação de ter manipulado o relatório dos serviços secretos para "apimentar" a tese de que haveria no Iraque armas de destruição maciça, escreve: "Não devem ser feitas acusações falsas que ponham em causa a integridade moral de outros". Num momento em que parecem esgotadas as "esperanças" de vir a encontrar o "caldeirão de ouro" nom fim do arco-íris que justificou a guerra no Iraque, interroguemo-nos se é legítimo fazer afirmações falsas que ponham em causa a integridade física de uma população. Segundo os seguidores da teoria Hutton, sim: integridade moral, jamais; integridade física, "no problem". Um primeiro-ministro não pode ser difamado, mas muitos homens podem ser mortos.
Ambas as informações - a do jornalista da BBC e a do primeiro-ministro Tony Blair - eram, ao que parece, pouco fiáveis. Só o jornalista (e os responsáveis da BBC) estão agora demitidos. O juízo é profundamente contraditório e revelador do estado de sítio em que o mundo caiu depois de 11 de Setembro de 2001.
O relatório Hutton é de um maniqueísmo extremo: o juiz condena a BBC por considerar que o seu sistema editorial falhou - não confirmou como devia a prova da manipulação governamental - e "absolve" o Governo que partiu para uma invasão territorial sem confirmar como devia as informações dos seus serviços secretos.
A limpeza de imagem de Tony Blair levada a cabo pelo relatório Hutton é um monumento à hipocrisia (ou à fé extrema). Obviamente, ninguém adivinhava que o cientista David Kelly se iria suicidar, mas a divulgação pública do nome é da responsabilidade única e exclusiva do Governo. O texto de Hutton tem passagem anacrónicas: "É injusto dizer que a nomeação do nome do dr. Kelly foi uma estratégia do primeiro-ministro"; "O Ministério da Defesa falhou e deve ser criticado por não ter informado o dr. Kelly que o gabinete de imprensa confirmaria o seu nome se algum jornalista o sugerisse"; "A decisão tomada pelo Ministério da Defesa de confirmar o nome de Kelly se ele fosse apresentado por um jornalista não fez parte de qualquer estratégia para revelar o seu nome (...)". Há nestas alegações algum 'non-sense', claramente percebido pela opinião pública britânica que, por estes dias, se rebela contra Blair e mantém confiança na BBC.
"Estávamos enganados em quase tudo", declarou David Kay, o inspector americano que agora se demitiu, depois de andar há meio ano à procura de armas de destruição maciça. Ao contrário do que aconteceu na BBC com o caso Kelly, nenhum dos decisores políticos da invasão assumiu, até ao momento, que declarou uma guerra baseada em informações pouco fiáveis, nem pagou o preço político que lhe deve corresponder.
 
Ser

Ser e Ter está no Corte Inglês

Se há um filme a ver com urgência para quem está em Lisboa é este, em exibição em apenas uma sala. É um documentário sobre crianças numa escola primária. O anúncio português do filme recomenda-o «para pais e professores», mas penso que não é isso: o que fomos todos, certamente todos os que me estiverem a ler, foi crianças de quatro, cinco, seis anos a aprender a desenhar as primeiras letras, a pintar pelas primeiras vezes, a escrever as primeiras frases, a ter os primeiros ódios, as primeiras amizades, os primeiros amores. Foi isso que fomos e, como se percebe no filme e pelo encanto dele, é isso que de certa maneira descobrimos que ainda somos. Gostava de mostrá-lo à minha sobrinha.
Na foto, o herói do filme, Jojo - talvez só por acaso homónimo do melhor amigo de Brel.

As crianças mais pequenas, os bebés pequeninos entre um ano e os seis anos, entre começarem a falar e irem para a escola, têm uma filosofia da vida, têm um conhecimento das coisas, têm um realismo das palavras e das ideias, têm uma alegria de viver e uma eficácia das relações inter-humanas que é espantosa, se observarmos bem... com aquelas birras que têm os bebés, com aquelas coisas todas que eles fazem, que depois se perde um bocado na idade escolar... E depois a gente passa o resto da vida a ver se é capaz de reencontrar o sonho perdido daquelas primeiras fases (...) eu penso que todos nós fazemos um bocado isso de tentarmos reencontrar aquela espontaneidade, aquela curiosidade, aquele à-vontade para dizer as coisas.
[João dos Santos (com João Sousa Monteiro), 1988, Se não sabe porque é que pergunta?, Lisboa: Assírio e Alvim, pp.65-66]
 
«Hoje em dia só quero ver comédias românticas»
Por que é que tantas mulheres com mais de 30 anos, e virtualmente nenhum homem, dizem que os únicos filmes que lhes apetece ver são comédias românticas? São só as mulheres que fazem um esforço tremendo para manter as suas vidas controladas, em ordem, para deixar a tristeza sem lhe tocar, de tal forma que qualquer filme em que haja culpa, ou violência, ou desencontro ou tragédia, as incomoda?
Andarão os homens felizes da vida? Ou com vocação introspectiva? Serão de tal forma umas bestas que os filmes «pesados» nem chegam a dizer-lhes nada?
A mulher da comédia romântica é um homem que diz: «eu hoje em dia só bola. Filmes e livros, não estou para me aborrecer».

Longa vida às comédias românticas. No estado em que as coisas estão, dá ideia que se não fossem elas já nem havia romance.

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