Vamos imaginar um cenário de politic fiction.
Há um avião que se prepara para levantar voo em
Moscovo. Um fiel empregado da CIA, ali em serviço, previne imediatamente os
seus patrões na América: “O gajo vai levantar voo, o avião vai para a América
do Sul, não consegui saber exactamente para que aeroporto.”
A máquina de técnicos imperialistas entra
imediatamente em acção.
O gajo de Moscovo é o Edward Snowden, jovem
ex-prestador de serviços aos ultra-sofisticados e poderosos serviços
ultra-secretos americanos NSA, aquele americano que teve a coragem de atirar cá
para fora informações absolutamente escabrosas sobre o monstruoso sistema
americano, digo monstruoso no sentido de nazi-fascista-kgb, um sistema de
espionagem cuja existência ignorávamos, mas que agora sabemos que se ocupa de
dia e noite sobre tudo o que mexe à face da terra, pessoas, gente, crianças, gatos,
elefantes, adolescentes, professores, gente pequena, gente assim-assim, funcionários,
operários, gente mais pequena, mais velha, mais nova, mais rica, mais pobre,
mais preta, mais branca, mais índia, mais amarela, mais americana, mais
europeia, mais chinesa, mais japonesa, gente mais escura, gente africana,
governos, agentes de governo, contínuos, mulheres-a-dias, embaixadas, chefes do
estado maior, chefes de armazém, a lista é infindável, faz-me lembrar aquele
poema do Drummond de Andrade sobre a lista telefónica.
Retomemos o fio à meada, o gajo levantou voo,
logo, por conseguinte, a luta vital da NSA e da CIA contra o terrorismo, esse grande
baluarte da identidade e dos descaramentos do império gringo-americano, essa
luta vitalíssima exige respostas, contra-ataques, mísseis, tudo de imediato,
armas letais, decisões no mínimo geniais.
Manda-se para o ar um caça caçar o dito avião?
Não, isso não é possível, os americanos ainda não mandam em Moscovo, se ainda
fosse o Napoleão e ele tivesse aviões, era canja, eram favas contadas.
Não se pode caçar o avião, mas pode-se mandar
pará-lo. Parar um avião, aí está uma óptima, uma fulgurante ideia. Já houve exemplos
disso. Lembro-me, duma maneira já um pouco vaga, do que aconteceu aqui há
alguns anos, os pormenores já lá vão, mas tenho a ideia de que era um avião civil
coreano cheio de gente, que foi abatido por um caça militar, russo, acho que
era russo, o tal avião tinha entrado nos limites do espaço aéreo que já não era
dele.
Caçar um avião no ar, tarefa muito complicada,
mesmo para a NSA/CIA. Que fazer, então? O avião vai em direcção à América do
Sul, a CIA, a NSA e todos esses extraordinários especialistas põem os
computadores a trabalhar, traçam a rota previsível do avião, ele tem que ser
travado dentro daquilo que será a sua rota normal. Vai ter que passar por
Itália, por França, pela Espanha e por Portugal. E, a seguir, entra no
Atlântico, aí já não há nada a fazer, ou seja, o avião tem que ser impedido pelos
respectivos governos desses países de sobrevoar esses quatro países latino-mediterrânicos,
dá-se-lhes a ordem, eles obedecem sem qualquer hesitação. Gente obediente. Mas,
para já desvia-se o avião para outro país, que também seja seguro e amigo.
Abreviemos este cenário político de série B, o avião aterra em Viena de
Áustria, cidade muito segura, gente de confiança, não me vou alargar sobre
porquê.
Aterra o avião, já tinham no aeroporto um exército
de funcionários da segurança preparados, ocupam-se do seu estacionamento numa
zona reservada, mandam abrir as portas, sobem a escada, entram. “Onde é que
está esse gajo, o Snowden?...”. Nesta altura, sendo eu o autor do cenário, devia
ser capaz de arranjar uma resposta em russo, estilo niet, mas infelizmente não
conheço a língua. Imaginemos, então, a sequência sem diálogos. Ninguém
respondeu à pergunta sobre o Snowden, é que no avião ninguém falava espanhol,
nem alemão, nem inglês, só falavam russo. Não eram muitos, eram poucos
passageiros. Estavam todos literalmente siderados, espantados com o que estava
a acontecer.
Passado o efeito do siderante espanto, saiu de lá
um gajo com ar atlético. Os polícias austríacos não o reconheceram, mas eu, que
não estava lá, posso confirmar que ele era sem sombra de dúvida o Vladimir
Putin. Os agentes austríacos assustaram-se com aquele gajo aos berros e, como
se assustaram, desataram à porrada no Putin. Assustaram-se consigo próprios,
não eram muito inteligentes, o que é que pensa, como é que reage um polícia austríaco
quando lhe aparece um estrangeiro aos berros?
Naquele momento, eles não imaginaram nada do que
viria a seguir, mas a sua brutal ignorância de polícias austríacos, que lidam
em geral zangados e desabridos com estrangeiros, criou uma situação muito
complicada. Continuemos a imaginar. Na melhor das hipóteses, talvez o mundo,
naquela cena de avião estrangeiro sequestrado, tenha estado perto de chegar à
beira duma guerra nuclear.
Podia ser um cenário de filme e, em geral, no fim
dos filmes, no genérico costuma vir uma advertência final: “esta é uma obra de
ficção, qualquer parecença com pessoas…. é puramente acidental”.
Mas, neste cenário apenas um personagem é de
ficção, é o Vladimir Putin. Mas, embora de ficção, o presidente russo teve uma
participação real na história e não propriamente como actor secundário. Está
confirmado, vi na televisão. O Putin recebeu nesse dia, que é hoje, quarta-feira,
3 de Julho de 2013, o verdadeiro protagonista do filme, que é um tipo chamado Evo
Morales que, por curiosa coincidência também é presidente, não da Rússia, mas da
Bolívia.
Não era, pois, o presidente da Rússia que ia no
avião de Moscovo, era o presidente da Bolívia que viajava no seu avião
presidencial para a sua terra, a Bolívia. Foi forçado a aterrar em Viena de
Áustria, foi tratado como um desgraçado espião e provável terrorista pela
polícia austríaca que forçou a entrada no avião. Evo Morales e os seus
acompanhantes foram forçados a ficar durante treze horas imobilizados no
paddock do aeroporto de Viena. Entretanto, os srs. François Hollande, de
França, Mariano Rajoy de Espanha, Enrico Etta de Itália e Passos Coelho de
Portugal impediram-no de prosseguir viagem.
Como é que as coisas se teriam passado se, em vez
do Evo Morales, presidente dum país latino-americano, estivesse de facto no avião
o atlético e todo poderoso Vladimir Putin?
Os grandes países europeus, estilo Portugal, que são
grandes países da grande finança, ricos e poderosos, sabem como tratar os
pequenos e longínquos países, ainda por cima governados por um índio. São
países da grande tradição racista, colonialista e fascista europeia. Detestam,
odeiam e desprezam os pequenos países e os “indígenas” e, ao mesmo tempo,
curvam-se perante a majestade dos grandes países que são quem agora governa de
facto, países que manipulam, que espiam, que controlam tudo, que exploram, que
matam. Esses países da união europeia, com toda a sua jactância, não passam de
lacaios do imperialismo americano e não têm pinta de vergonha, não é ò Hollande,
ò Rajoy, ò Etta, ò Coelho? Mas estão a ficar caquécticos, desconhecem
pormenores supremamente importantes, como é, neste específico caso, o facto de
a Bolívia possuir as maiores reservas mundiais de lítio. Sabem para que é que
serve esta coisa? Sabem certamente, mas nunca é demais lembrar: sem lítio não
há baterias para os automóveis eléctricos.
Ò Hollande, já agora, tu que és uma das principais
sumidades da coisa chamada união europeia, embora até hoje, não tenhas feito
nada que se visse, diz-me lá, explica-me: como é que tu, todo armado em
patriota gaulista, andas a pedir, quase diria exigir, explicações aos EUA sobre
o que é que eles andam a fazer a espiar as embaixadas e a administração e os
políticos franceses, e, ao mesmo tempo, te pões todo de cócoras para ajudar os
gringos a apanharem o desgraçado que anda fugido por esse mundo só porque teve
a coragem de nos informar sobre as patifarias e os crimes que os serviços
secretos americanos andam a fazer? Queres proteger as tuas embaixadas? Começa
pela embaixada em La Paz, Bolívia. E, já agora aconselha os franceses a não se
deslocarem pela América do Sul. Mesmo conselho, se é que vale a pena, para ti,
ò Coelho. A questão é que, além de estares de malas aviadas, estas coisas são
demais para a tua cabeça, demasiada areia.