Os resultados da cimeira europeia de 9 de Dezembro, apresentada por Sarkozy como a cimeira da última oportunidade, suscitaram uma torrente de comentários entusiásticos. Pareceu-me tudo um bocado forçado e prematuro.
Passado o fim-de-semana, a maré dos encómios parece ter arrefecido.
Na segunda-feira, as bolsas avermelharam, na terça continuam vermelhas.
Ainda na segunda-feira, o provável próximo presidente francês François Hollande veio declarar quase solenemente que, se for eleito, vai renegociar aquela coisa que foi acordada na dita cimeira, sob imposição da Alemanha, coisa que não é um tratado, mas que alguns insistem em designar como tratado inter-governamental, como se tal coisa existisse.
Mas a nota dominante do pós-cimeira foi a grande ofensiva mediática contra o Cameron inglês. O próprio vice-primeiro-ministro inglês liberal malhou no homem.
Tudo muito sintomático do clima de medo e de pânico a que chegaram os euro-entusiastas.
Propaganda anti-inglesa à parte, ainda não se sabe quantos países é que afinal vão assinar a tal coisa. São 26 ou, afinal apenas 23, ou, sabe-se lá, talvez menos?
O que é que se deve reter de toda esta história de cimeiras da última oportunidade? Por mim, vale a pena reter principalmente algumas lições britânicas.
Primeira lição: quando, no início do século XIII, o parlamento inglês impôs a Magna Carta ao rei João Sem Terra, ficou então assente que ninguém, seja quem for e quaisquer que sejam as circunstâncias, está mandatado para exercer o principal acto de soberania de um país, o qual consiste em fixar e aprovar impostos. E ficou escrito que tal acto pertence exclusivamente ao parlamento.
Na circunstância da dita cimeira de 9 de Dezembro, poderia o primeiro-ministro inglês, Cameron or not, convidar a doutora chanceler alemã Merkel para ser ela a decidir sobre o orçamento do Reino Unido, país que teve o privilégio histórico de impor há oito séculos a Magna Carta ao Joãozinho sem terra?
Segunda lição, que não foi devidamente ponderada, apesar do actual desastre resultante de anos e anos de fantasias comunitárias europeias.
Os mandões da chamada união europeia, cujo aparelho de propaganda desencadeou uma operação sem precedentes contra o primeiro-ministro inglês, deviam dar-se por felizes por terem o Cameron em Downing Street. É que, no limite a que as coisas chegaram e face ao que pensa a opinião pública britânica, ele é o único político que tem neste momento capacidade para impedir que o United Kingdom saia da tal de união europeia.
Porém – e essa é a grande, a verdadeira grande questão - resta saber de que união se trata.
A ocasião é propícia para se debater, pela primeira vez discute-se a Europa. Debata-se, então, a Europa, ou seja, passemos das abstracções que nos têm sido impingidas pelos burocratas de Bruxelas ao longo dos anos e pensemos a Europa real.
A Europa não existe, existem várias e elas são todas muito diferentes. Existem interesses comuns? Existem alguns, claro, esqueçamos as guerras. O principal e óbvio interesse comum inter-europeu, o interesse decisivo é o comércio.
O comércio não envolve apenas transacções de coisas e de serviços, o comércio tem a ver com pessoas e com culturas, ele é a mais pacífica e profícua das actividades inventadas pelos homens. Sejamos, pois, realistas, apostemos no comércio entre europeus como base para um entendimento pacífico entre as nações do velho continente. Aprofundemos esse entendimento em bases sólidas.
Terceira lição inglesa, consequência da anterior. Os british estão muito interessados em pertencer a um conglomerado europeu, que dantes se chamava Mercado Único Europeu e que depois derivou para perigosas fantasias, a mais perigosa das quais é a chamada moeda única, o fatídico euro.
Estão interessados em comerciar com os outros europeus, mas não prescindem da sua moeda. Estão interessados em manter relações económicas e culturais com os seus vizinhos do continente, mas não aderiram nem vão aderir ao chamado espaço Shengen.
Talvez outros países queiram ter entre si uma moeda comum, talvez não se importem de abrir as suas fronteiras. Entendam-se, aprendam a conhecer-se. Mas, para isso, não é preciso fundar um bloco granítico, estilo império germânico.
O Cameron e a maioria dos ingleses estão interessados na convivência com o pessoal do “continente”, mas não querem blocos, querem continuar a ser british, não querem patrões. Querem continuar livres e soberanos.
Nunca renunciarão aos princípios básicos da democracia moderna que eles fundaram.
Continuam a ser uma peça-chave da liberdade dos povos europeus e, por isso, de algum modo todos os europeus se devem sentir ingleses. Os europeus com memória continuam a reverenciar Winston Churchill.
Esperemos que os povos do continente apreendam a lição da democracia britânica e não se deixem intimidar pela polícia germânica.
Polícia germânica, vem a propósito para um último comentário.
Talvez a cimeira de 9 de Dezembro tenha sido a da última oportunidade.
Da última oportunidade para a Alemanha, entenda-se.
A chanceler Merkel conseguiu nessa reunião do tudo ou nada exactamente tudo o que queria, impôs a sua vontade, esticou a corda até aos limites. Penso, no entanto, que foi uma jogada demasiado arriscada, que poderá virar-se contra os interesses da vontade de poder germânica.
A disciplina, as invasões de soberania e as punições impostas pelos alemães vão ser um fiasco. A disciplina alemã não vai resolver a crise chamada de dívida soberana, que na realidade é uma crise social que não contempla últimas oportunidades para muitos e muitos desgraçados. Vai provocar revolta e miséria, miséria e revolta. Belo cocktail!
Falhando a disciplina alemã da última oportunidade imposta aos países europeus com a corda na garganta, o que é que tem a Alemanha para oferecer? Terá um plano B (C, D…)?