PEDALAR É PRECISO!

sábado, 11 de outubro de 2014

Carta ao Pai

Meu querido Pai,

Escrevo-lhe finalmente esta carta após meses a escrever-lhe na minha cabeça. Vou ter que dizer algumas palavras no lançamento do seu livro daqui a umas semanas e há tanta coisa que eu gostaria de dizer. Sei que não conseguirei dizer nessa noite aquilo que eu gostaria de lhe dizer. Sei também que a emoção será muita.

Há uma semana foram os meus anos. Os meus primeiros anos sem o Pai. Com certeza teríamos falado ao telefone, tal como falámos naquele Domingo antes do Pai nos deixar. Foi uma conversa tão boa. O Pai contou-me do seu romance, foi uma conversa tranquila e longa. Faz agora cinco meses. Foi pouco antes desse fatídico dia 1 de Maio, quando o Pai nos deixou assim de repente sem um ultimo adeus. Se o Pai tivesse podido escolher um dia para nos deixar teria sido esse dia com certeza, o dia do trabalhador, o dia dos direitos sociais, um dia a’ sua medida. Entretanto ficou o seu livro (or rather, os seus livros), o Pai foi-se embora, for ter com a Avó Maria. Como a sua Tia de Coimbra nos disse, estão agora os dois juntos a rirem-se um com o outro.

Passavam-se meses sem que falássemos um com o outro e não tínhamos sequer um contacto regular. Mas o Pai era uma parte de mim. Muito do que eu sou hoje é o Pai; os seus gostos, os seus genes, a sua calma, o seu jeito. Claro que sou também muito de outras pessoas, como a Leonor. Perder alguém não é só perder essa pessoa, perder a sua presença, e saber que há agora apenas ausência. É também perder alguém que nos ama. O Pai não era perfeito (but then again, who is?) e nós que convivíamos com o Pai sabemos como podia ser por vezes uma pessoa difícil, mas também sabemos o quão especial o Pai era; o seu vasto conhecimento, a sua inteligência, a sua sensibilidade, o seu carinho. Não falávamos com regularidade e claro está há 20 anos que parti para Inglaterra (tal como o Pai partiu para França em anos idos), mas eu sempre soube que o Pai me amava muito e que tinha muito orgulho em mim, e mais fundamentalmente que eu era uma parte importante da sua vida, da sua existência.

Perder alguém a quem pertencemos, é perder uma parte importante da nossa vida. É fechar uma porta a parte da nossa identidade. Ficam claro as memórias (recorda-se dos nossos almoços às sextas-feiras? Quando o Pai esperava por mim a’ porta do liceu francês? Lembra-se quando ofereceu-me a mim e ao meu namorado um bilhete par irmos ver Gone With the Wind no grande auditório da Gulbenkian? Lembra-se dos concertos todos a que fomos juntos? Lembra-se dos nossos passeios no Jardim Luxembourg? Lembra-se de ter chamado Besta Quadrada ao Henrique VIII, não se apercebendo que o meu marido inglês o percebia? Lembra-se daquelas refeições todas maravilhosas que partilhámos?) – ficam também os gostos e os jeitos, que continuam a ser parte de mim e dos meus filhos, os seus netos que tanto têm do Pai.

Entretanto, durante o verão, li o seu livro, o romance; Amor e Utopias. O livro é o Pai, e sinto que o livro é o seu legado para nós. O livro é o Pai through and through. Mais uma vez, se pudéssemos prever estas coisas, este teria sido com certeza o legado que o Pai quereria ter-nos deixado. Obrigada. Fica esse bom legado connosco.

Entretanto vou continuando a escrever-lhe; se não for aqui, no seu blogue, será na minha cabeça. Sei que o Pai me escuta; as minhas palavras de estrangeirada, onde o português me vai faltando, mas onde a memória ficara cá sempre. Sei que não tenho o dom da palavra que o Pai tinha, mas sei também que o Pai sabe o quanto o amo e quanto as minhas palavras são sinceras. Escrevo-lhe e imagino-o naquela encosta de Lisboa, onde tudo é mais calmo, o céu azul, sempre, e o rio lá ao fundo.

Muitos beijinhos Pai,
Cristina


PS: Para todos que seguiam o Blogue do meu Pai, as minhas desculpas por ter usurpado este espaço, mas para mim é uma forma de comunicar mais directamente com ele. Para todos potencialmente interessados no romance que o meu pai escreveu, o lançamento terá lugar a 29 de Outubro. Se quiserem mais informações, entrem em contacto comigo: c.c.leston-bandeira@hull.ac.uk

quinta-feira, 10 de abril de 2014

9 DE ABRIL DE 1918 - A CARNIFICINA DE LA LYS


Este texto foi aqui escrito há quatro anos. Vale a pena relembrá-lo. Há coisas que não podem ser apagadas da nossa memória.
Abril parece ter o signo de ser um mês consagrado a efemérides. Agora, temos o dia 25, não se sabe bem por quanto tempo ainda. Mas, no Estado Novo, os dias de comemoração eram outros.
Havia o dia do aniversário do Salazar, acho que era no dia 27, na escola chateavam-nos, os professores tinham que fazer o elogio do grande chefe, mestre e redentor da Pátria, os putos fingiam que ouviam.
Mas há outro dia de Abril de que me lembro muito bem, continua a impressionar-me essa data, o 9 de Abril.
Desfilavam então nas ruas, aperaltadas e sorridentes, cheias da sua importância, umas senhoras que pespegavam, em troca de umas moedas de 25 tostões, nas lapelas dos senhores bem vestidos, um pequeno capacete de lata, sempre me apeteceu ter um, era um objecto fascinante, um pequeno capacete militar, percebi mais tarde que pretendia representar os soldados portugueses sacrificados da matança de La Lys.
La Lys é o nome duma ribeira e o vale que a acompanha, situados na Flandres, na Bélgica. Neste bucólico local, as tropas portuguesas, em apenas quatro horas de batalha no dia 9 de Abril de 1918, perderam cerca de 7500 homens entre mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros, ou seja, mais de um terço dos efectivos, entre os quais 327 oficiais.
Foi a mais estrondosa derrota de tropas portuguesas desde a batalha de Alcácer-Quibir.
O massacre prolongou-se até ao dia 29, faltavam poucos meses para terminar a grande guerra. A grande guerra que inaugurou o que se esperava fosse o grande século do progresso, do telégrafo, da electricidade, dos telefones, da telefonia sem fios, dos electrodomésticos, do Ford T, and so on. De facto um século de massacres. Et ça continue.
Essa guerra, grande ou como queiram chamar-lhe faz-me pensar noutra efeméride.
Em 31 de Julho de 1914, três dias antes de começar a primeira grande matança moderna, um extremista belicista de extrema direita, cujo nome me recuso a nomear, assassina às 9 e meia da noite Jean Jaurès quando este jantava no Café du Croissant, na rue Montmartre, uma pausa antes de se dirigir à sede do jornal que fundara, l´Humanité, para escrever mais um apelo contra a ameaça de guerra tecida pela Alemanha, pela Áustria, pela Rússia e outros interesses nacionalistas esquizofrénicos.
Estas intrigas tinham-se acelerado após o atentado de Sarajevo, em 28 de Junho de 1914 e Jaurès tentou organizar uma greve geral dos países europeus ameaçados pela guerra. Era o mais eminente opositor a essa guerra fratricida, mas infelizmente os seus esforços fracassaram.
Em 29 e 30 de Julho, Jaurès vai a uma reunião da Segunda Internacional Social-Democrata em Bruxelas, que ele convocara. No dia 29, à noite, num comício contra a guerra, Jaurès e os dirigentes do Partido Social-Democrata Alemão são aclamados e no dia seguinte os dirigentes da Segunda Internacional votam por unanimidade um apelo a favor de manifestações contra a guerra.
Mas, no dia seguinte, o assassinato de Jaurès precipita tudo, rompe-se a unidade da esquerda contra a guerra, a maioria dos social-democratas e socialistas passam a apoiar os seus governos beligerantes, nasce a União Sagrada da esquerda a favor dos massacres em nome de quê, vá-se lá saber. Enigmas da história, da loucura humana.
Jean Jaurès, que tinha sido o mais destacado opositor desse surto de loucura assassina, acaba por ser a sua primeira vítima.
Muitos milhões de mortos mais tarde, quando a guerra estava quase no fim, chegou a vez, o momento do sacrifício dos pobres soldados portugueses ali junto à ribeira de La Lys.
Saberiam por que razão estavam ali? Tinham sido mandados por uns senhores que mandavam em Lisboa, certamente eles saberiam as razões. Não seria com certeza porque pensassem que quem vai à guerra dá e leva, não estavam a jogar à sueca entre dois copos de três.
No fim, os capacetes não lhes valeram de nada. Ficaram lá estendidos.
Mas a efeméride também já passou à história, já ninguém se lembra dela.
Hoje, 9 de Abril de 2014, 100 anos depois do início do grande massacre de 1914-1918 ter começado, o jornal que costumo ler todos os dias, não trazia uma linha sobre a carnificina de La Lys.
 
 

segunda-feira, 10 de março de 2014

DEFENDER O "MUNDO LIVRE" NA CRIMEIA?



Vou seguindo com atenção as peripécias da Ucrânia-Maidam e da Crimeia-Pátria Russa e não sei se deva rir ou se deva chorar. Farsa ou tragédia?

É impossível não evocar alguns factos, situações trágicas e personagens absurdos que pontuaram o cortejo mundial de guerras, e destruições, de genocídios e de toda a espécie de crimes que vitimaram milhões de inocentes durante os últimos 150 anos.

Não me vou estender sobre as duas guerras chamadas mundiais, nem sobre a guerra oitocentista da Crimeia entre Otomanos, Ingleses, Russos e Franceses. Neste momento, tudo isso é demasiado para a minha cabeça.

Penso na Ucrânia e, automaticamente, penso nos pogroms russos e ucranianos que perseguiram e mataram milhares de judeus. É uma história interminável que terá começado no séc. XVII.

Pode ter começado na Ucrânia, alastrando por toda a Rússia czarista e para outros países mais ou menos vizinhos, Polónia e, principalmente, Alemanha.

Lembro os sucessivos massacres cometidos contra os judeus da cidade de Odessa ao longo do séc. XIX, lembro os pogroms organizados durante a guerra civil russa. Lembro o terrível genocídio executado em toda a Ucrânia e nas repúblicas soviéticas ocupadas, pelas tropas nazis, muitas vezes apoiadas por gente dali.

Serão os pogroms uma especialidade nacional ucraniana? A palavra é russa, mas como distinguir um ucraniano dum russo, dum tártaro, ou dum cossaco?

Como classificar um tipo que mata, que viola, que rouba alguém, apenas  porque ele ou ela são judeus, ciganos ou homossexuais? Como distinguir esse criminoso não apenas dos tipos que o mandaram matar, violar e roubar, mas também dos tipos que sabiam o que é que estava a acontecer e não fizeram nada para o evitar?

No século passado, no final da 2ª guerra, o Churchill inventou a “cortina de ferro”, os americanos começaram a “caça às bruxas”, ou seja, perseguições a tudo e a todos que cheirassem a comunismo, e decretaram uma guerra sem quartel em defesa do “mundo livre”.

Criaram a NATO, organizaram golpes de estado em toda a América Latina, era a chamada teoria Monroe. Governaram o mundo pelo terror em nome da luta pelo “mundo livre”, contra o comunismo. Invadiram a ilha de Cuba, lixaram-se na baía dos porcos. Lugar perfeito, designação perfeita, humilhação super-justa. Mas os esforçados defensores americanos do tal mundo livre não desarmaram. Em represália, instituíram um bloqueio total à ilha castrista. Até hoje.

Invadiram o Vietnam, provocaram uma guerra terrível. Quando o Kennedy mandou avançar as tropas, tudo parecia fácil. O final da história é conhecido: os viets, pequeno povo aparentemente negligenciável, impuseram uma derrota humilhante à maior potência militar da história. Fiasco irreparável para os defensores do chamado mundo livre.

Vale a pena perguntar a propósito de todas estas exacções americanas se alguma vez, antes, durante ou no final dos crimes cometidos, foi invocada, como parece estar a sê-lo agora a propósito da Ucrânia e da Crimeia, a pertinência, a força, a legitimidade das leis e dos tratados internacionais? Alguma vez, foram os EUA julgados pelos seus crimes contra a Humanidade?

Vão os americanos passar agora a uma nova fase de defesa do “mundo livre”, envolvendo-se num conflito com a Rússia em solidariedade com a soberania e o povo da Ucrânia? Vão pôr em marcha um bloqueio total à Rússia ocupante da Crimeia, um bloqueio idêntico ao bloqueio com que cercaram Cuba? Vão os europeus, em particular a grande potência europeia chamada Alemanha, colaborar nessa meritória tarefa?

Leio nos jornais que os russos da Crimeia saíram festivamente à rua para comemorar antecipadamente o seu “regresso” à mãe-pátria russa. Manifestação tipicamente nostálgica. De duvidoso futuro.

Nostalgia dos “gloriosos” tempos da União Soviética, nostalgia do Zé Estaline e dos goulags. Nostalgia do socialismo real que continua a existir na Rússia apesar da perestroika, às ordens de Putin, das suas polícias, dos seus oligarcas e das suas máfias.

A Crimeia parece-me um lugar muito solitário e patético. Amam a Rússia de Putin, será este amor um problema apenas deles?

O que farão os americanos e os seus amigos alemães para travar Putin e os seus sonhos de ressurreição soviética? Guerra fria, guerra quente? Sanções económicas? Bloqueio cubano??

Penso nos tremendos fiascos americanos na sua luta fundamentalista e paranóica contra o comunismo a favor duma criminosa ficção chamada “mundo livre”, lembro a recente invasão russa da Geórgia e, a propósito de tudo isto, evoco o filme do Alain Resnais sobre a guerra civil espanhola. Naturalmente, concluo: “La guerre est finie”.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

DEMOCRACIA DIRECTA, É O POVO QUEM MAIS ORDENA

 

A Suiça é seguramente um dos países mais admirados do mundo. Mas é também um dos mais detestados.

Mais detestado do que os EUA, do que a Rússia, do que a China? Mais detestado do que a União Europeia?

Seja qual for a resposta a esta questão, o país helvético é um exemplo que merece ser reflectido a propósito da democracia e dos poderes que mandam around the world.

A Confederação Helvética tem pouco mais de 8 milhões de habitantes. Comparada com Portugal quase se poderia dizer que é um pequeno país. Um pequeno país com altas montanhas. Nós temos a ilha do Pico e a Serra da Estrela, 2.000 metros de altitude, que eu saiba, no Pico nunca neva.  

Politicamente, vale a pena comparar Portugal com a Suiça?

Sim, acho que vale a pena.

Portugal é um país com um glorioso passado de descobridor das sete partidas do mundo, a Suiça não descobriu nada, nem sequer tem mar. Como disse o Orson Wells, descobriu o relógio de cuco.

Portugal não teve propriamente guerras de religião, a Suiça teve o Jean Calvin e os seus seguidores e outros da mesma estirpe, durante imenso tempo andaram-se a matar uns aos outros por causa de questões teológicas.

As nossas guerras teológicas, conduzidas pela inquisição espanhola, elegeram uma vítima privilegiada, os judeus. Uma guerra com fogueiras, torturas, massacres, expulsões. Entre o Jean Calvin e a Inquisição, venha o diabo e que escolha.

Portugal é um país falido, sem indústria, sem pescas, sem agricultura, tem mais de um milhão de desempregados e, pelo menos, dois milhões de pobres com fome.

A Suiça é um dos países mais ricos do mundo, domina as indústrias farmacêutica e alimentar, é rainha da relojoaria, do queijo gruyère e da raclette. Tem a Nestlé e a Migros, é o país das grandes multinacionais. Tem o segredo bancário e os bancos, claro.

Nós temos o Jerónimo Martins que imigrou para a Holanda. Somos um país especializado na emigração. É quase certo que os pouco mais de dez milhões de habitantes que temos actualmente desaparecerão até ao final do séc. XXI, talvez, na melhor das hipóteses, até 2.150. O último sobrevivente que apague a luz.

Voltemos ao princípio. A Suiça é detestada por muita gente, sobretudo de esquerda, não há volta a dar. Portugal nem é detestado, nem é amado. Para todos os efeitos, este país, como diria a Ivone Silva é um colosso, está tudo grosso, está tudo grosso! Um país de sarjeta, que desperta em alguns passantes mais atentos e caridosos vagos sentimentos maternais e cristãos, coitados dos portugueses!

A Suiça é rica, é próspera, defende com unhas e dentes o segredo dos cofres dos seus bancos da Bahnhoffstrasse de Zurique, os quais acolhem de braços abertos as fortunas de todos os ditadores, torcionários, capitalistas delinquentes, ladrões da alta finança, traficantes de armas, et j’en passe.

Zurique é a capital do arquipélago da roubalheira off shore. Off shore, fora da lei, fora da decência e da justiça, paraíso para criminosos. Sendo a capital deste arquipélago internacional da finança fora da lei, é supremamente justo que a Suiça figure no ranking dos países mais detestáveis. Detestemos, então, também as outras ilhas do arquipélago europeu desta roubalheira: Luxemburgo, Reino Unido, Liechtenstein, San Marino.

Portugal também tem ilhas, sobretudo ilhas falidas como a Madeira, mas a zona franca que por lá foi instalada não chega ao patamar superior do off shore, está limitada a corruptos nacionais. Por tudo isso, ficamos moralmente em vantagem em relação à Suiça. Não seria justo que alguém nos incluísse no ranking capitaneado pela Bahnoffstrasse.

Até a este momento da nossa comparação, ganhamos à Suiça, a zona franca da Madeira não é a Banhoffstrasse e Portugal não pertence à confraria mundial dos fazedores de miséria, de guerras e de pobreza. Valha-nos isso, é uma espécie de vitória moral.

Mas, se passarmos à comparação do sistema político dos dois países, penso que Portugal perde a vantagem.

A Suiça tem quatro línguas oficiais e uma longa história de desentendimentos internos entre latinos e germânicos, entre protestantes e católicos, entre culturas opostas. Mas, talvez por estarem entalados entre grandes potências europeias que ameaçavam a sua autonomia, esses povos resolveram tomar juízo e decidiram unir-se, superando as divergências e as diferenças que os separavam. Com o tempo, tornaram-se um país soberano, com fronteiras internacionalmente reconhecidas e um estatuto, que é excepcional e que o próprio Hitler teve que reconhecer, de neutralidade.

A construção da confederação helvética foi um longo processo de unificação dos seus 26 cantões num único país. O milagre que deu vida a esta unidade chama-se democracia directa.

Os detentores oficiais da democracia que vigora em Portugal, os jornalistas, os comentadores, os feitores de opinião, os políticos encartados, quando ouvem falar de democracia directa sacam logo da pistola, como se estivessem num filme do Sergio Leone.

Toda essa panóplia de gente, que concentra os poderes implícitos e explícitos que governam Portugal, leva muito a sério a célebre afirmação de Winston Churchill, citada a propósito e a despropósito de tudo e de nada: “a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos a tempos”. E concluem: não há alternativa à democracia representativa.

Democracia representativa, coisa simples e exemplar: de 4 em 4 anos vota-se, escolhem-se os representantes, que vão para o parlamento, ou que vão para as assembleias municipais e para as autarquias. Alguns desses felizes eleitos acabam no governo. De 5 em 5 anos, escolhe-se o Presidente da República. Eleição por sufrágio universal. Já lá vão quase 40 anos e ainda não se percebeu muito bem para que serve tão alto personagem.

No seu conjunto, todas estas eleições da democracia representativa representam muitos e bons anos durante os quais muitos dos dignos representantes eleitos acham que chegaram ao topo da elite local ou nacional e, ao mesmo tempo, aproveitam para ir enchendo os bolsos propriamente ditos e, porventura, os de alguns amigos do coração.

A democracia representativa assenta num princípio basicamente exorbitante, irracional e completamente fantasista: eu, eleitor, confio neste tipo em quem vou votar, não o conheço, nunca me foi apresentado, não conheço nem as suas ideias nem a sua ética pessoal, mas estou certo em consciência que durante os próximos 4 ou cinco anos, ele vai seguir escrupulosamente, embora também nunca o tenha lido, o programa político que o partido dele apresentou a esta eleição. Acredito piamente que o homem vai cumprir fielmente com as obrigações inerentes ao cargo que vai ocupar, acredito que não vai favorecer ninguém em particular, que não vai roubar, acredito que vai apenas servir o país. Estou certo que, quando acabar o seu mandato, não vai ser mais rico do que era antes de para lá entrar.

Sejamos sensatos e comedidos. Para quem não andar por aí apenas para ver passar comboios, se bem que eles sejam cada vez mais raros, é certo que vivemos no pior dos mundos possíveis. Um mundo onde, em continuum, tende a pontificar o mal absoluto. Não há santos profissionais que nos valham, lembremo-nos do Vaticano, do Banco Ambrosiano, da Máfia, do Pio XII, do Hitler, do Estaline, do Mao e seus seguidores, do imperador Hiroito, do George W. Bush, do Bashar Al Assad…

A lista não tem fim, cada dia a história confirma a opinião do historiador  católico britânico Lord Acton: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”(1897).

Infelizmente, não são se trata apenas dos grandes homens, muitas vezes os piores e mais maléficos são os “pequenos” homens, pequenos deputados, pequenos vereadores, pequenos chefes, pequenos ministros, pequenos presidentes de câmara, pequenos representantes disto e daquilo.

A democracia dita representativa é o caldo venenoso que alimenta essa gente alvoroçada, todo esse mundo deslumbrada pelo poder. Um veneno que os torna a todos capazes de todas as patifarias.

Viva então a democracia representativa, é o melhor dos sistemas que os humanos conseguiram inventar. Triste constatação.

Voltemos, então à Suiça. Tem os lagos, tem as montanhas, a neve, a Banhoffstrasse. E tem a democracia directa.

O último exemplo de democracia directa suiça deu para o torto. É o resultado tangencialmente favorável ao controle da imigração oriunda da união europeia.

Este texto já vai longo, por isso, não me vou referir às implicações e ao significado desta decisão colectiva. Os suiços não têm, não podem ter razões de queixa da imigração, a sua decisão é puramente xenófoba, é arrogante e economicamente errada. Problema deles? Não é apenas um problema suíço. Se olharmos à volta, reparemos no que se tem passado em Itália, em França, no Reino Unido, na Alemanha e por aí adiante. Há uma xenofobia europeia.

Aprofundemos, então, a questão da democracia directa.

Um dos instrumentos principais da democracia directa é o referendo de iniciativa popular. Através deste tipo de referendo, o povo intervém na política, impõe soluções, corrige, incentiva, defende direitos. O povo deve ser inteiramente soberano. Mas o povo não é o Papa do Vaticano. Enquanto o Papa é infalível, o povo pode enganar-se. Os suiços enganaram-se, cometeram um erro grave no referendo sobre a imigração. Mas noutros referendos, foi o povo que impôs políticas e decisões socialmente mais justas e “progressistas”.

A lição que importa sublinhar é que, através do referendo, o povo mantém os órgãos de governo sob permanente escrutínio.

Quem governa, sabe que “we are watching you”, é o big brother democrático.

Há quem goze com a Suiça, dizendo que o desporto nacional suíço são os referendos.

Em Portugal, onde o desporto nacional é o futebol, temos referendos de iniciativa parlamentar.  

Na Suiça, um referendo popular pode ser lançado por qualquer cidadão ou cidadã com direito de voto, contra qualquer decisão de órgãos de governo.

A democracia directa não se esgota no direito ao referendo, mas começa num direito elementar que deve ser reconhecido a qualquer cidadão. Direito que consiste em ter o poder de intervir na vida política através de iniciativas que procurem corrigir, sancionar, inovar, moderar a actividade dos políticos e dos órgãos de governo, a todos os níveis, local, regional, nacional.

A democracia representativa tornou-se uma espécie de barbitúrico, que serve para adormecer o povo e confortar na sua mediocridade e ignorância a gente que nos governa. Eles andam por aí à rédea solta, têm que ser travados. Travados, como?

Comecemos, por exemplo, pelo topo da hierarquia que nos está a destruir enquanto país, enquanto pessoas e enquanto sociedade. Reclamemos um referendo para destituir o Presidente da República, por incompetência e conluio com os inimigos do país e do povo.  

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

SERÁ QUE A ALEMANHA NÃO TEM UM PROBLEMA DEMOGRÁFICO?


A iliteracia demográfica em Portugal é secular. Esta noite, mais uma vez, fui confrontado com essa ignorância.

No numeramento de D. João III, mandado fazer em 1527, o qual é, aliás, uma das primeiras operações, de contagem da população que se pode considerar muito próxima da lógica que levou à progressiva generalização dos recenseamentos em países europeus a partir do séc. XIX, Portugal tinha uma população de cerca de 1.1100.000 habitantes. Muito pouca gente.

Informação preciosa. Tão preciosa que a elite que governava o país não se deu conta que o país estava por um fio. Estava exausto, não tinha gente. Depois do D. João e do Cardeal-Rei D. Henrique, veio o jovem D. Sebastião que decidiu, inspirado por um sonho de adolescente com o mundo a seus pés, mandar não sei quantos milhares e ele próprio serem massacrados em Alcácer-Quibir.

Acrescentemos a Alcácer-Quibir  a expulsão de milhares de Judeus decidida por D. Manuel I, o Venturoso e cá estamos nós com o mesmo tipo de elites, esmagados pela União Europeia e a moeda única, com um país, sem indústria, sem agricultura, sem pescas, sem universidades, sem ciência, sem emprego. Sem futuro. Um país, mais do que envelhecido, com a fecundidade mais baixa do mundo. Um país à medida de D. Sebastião. Sem futuro, uma colónia alemã.

Colónia alemã, vem mesmo a propósito.

Acabei de ouvir na TVI, a comentadora Constança Cunha e Sá. É uma das poucas vozes que aparecem na televisão que aprecio, é uma jornalista combativa, muito lúcida, consegue por vezes ser corrosiva quanto baste em relação ao governo que nos desgraça. Mas, desta vez, oh Constança, cuidado com as palavras, a Alemanha não tem um problema demográfico?

Iliteracia demográfica, Constança, iliteracia!

A Alemanha é o segundo país mais envelhecido do mundo, logo a seguir ao Japão. A Alemanha só não é o país mais envelhecido do mundo graças aos imigrantes que tem, principalmente os turcos, mas também muitos portugueses. Os imigrantes na Alemanha têm mais filhos do que as alemãs e os alemães. A Alemanha, desde os princípios dos anos 70, é o único país europeu que não tem conseguido chegar sequer a 1,3 filhos por mulher.

Em 2012, Portugal atingiu o limiar mínimo da sua história: 1,27 filhos por mulher e é o sexto país mais envelhecido do mundo. Aqui para nós: é mais do que provável que, dentro de vinte anos, as mulheres portuguesas, em média, terão na melhor das hipóteses, 1 filho por mulher. Cerca de 30%% da nossa população será constituída por seniores com mais de 65 anos. Pensem nisso.

A Alemanha, acrescentou a nossa amiga Constança, diminuiu a idade da reforma para 63 anos. Não é verdade, ou seja, essa medida só abrange cerca de 200.000 pessoas, as quais merecem essa benesse porque  trabalharam pelo menos… 45 anos. São uma minoria. O  sr. Goebbels não seria capaz de ir tão longe na manipulação.

A Alemanha não tem um problema demográfico?

A Alemanha, Constança, ao contrário do que afirmou esta noite perante muitos milhares de pessoas, tem um grave problema demográfico.

Tem o  mais grave  problema demográfico de todos os países da União Europeia: população muito envelhecida, fecundidade no limiar do desaparecimento desde há quarenta anos, população jovem insuficiente para as necessidades do Estado e da economia, crescimento negativo da população (dentro de poucos anos, a população alemã será inferior não apenas às populações do Reino Unido e da França, mas também da Polónia). Um verdadeiro calcanhar de Aquiles.

Como é que a Alemanha resolve actualmente o seu “problema demográfico”, problema que a nossa amiga Constança diz que não existe?

A Alemanha da srª  Merkel importa mão de obra qualificada, a Alemanha pilha principalmente os país do Sul, que levou à ruína com as suas políticas “europeias” de austeridade favoráveis à economia e ao capital alemães.

Pirataria, sim, pirataria. Os alemães vão aos países do sul, capturam jovens qualificados que estão desempregados, portugueses por exemplo, cuja formação custou muito dinheiro aos países que são pilhados. Chama-se a isto brain drain. A eles, os que pilham, não custa nada, a nós custa-nos o nosso futuro.

Oh Constança, a Alemanha parece não ter um problema demográfico, porque rouba os recursos dos países aos quais impõe a sua ditadura. E, assim, lá vai a Germania de vento em popa. Até que um dia aconteça qualquer coisa, o futuro é sempre uma incógnita,  on verra bien.

Talvez a doutora Merkel seja uma espécie de  D. Sebastião. Talvez, nos seus sonos agitados, tenha sonhado o sonho do Hitler, que queria conquistar tudo e mais alguma coisa. Talvez ela não seja tão ariana como isso. Não faço processos de intenção, nem sou adepto de amálgamas.

Mas o D. Sebastião não tinha gente suficiente para sustentar os seus devaneios de príncipe talhado para um grande destino. O sonho sebastiânico de um grande destino foi a nossa desgraça.
A Alemanha já perdeu duas guerras mundiais. Destruiu meia Europa. Era saudável que quem por lá manda pense muito nisso tudo e trate de resolver, por vias aceitáveis e  razoáveis,  o problema demográfico a que a Alemanha, passe o tempo que passar, nunca conseguirá escapar.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

PHILIP SEYMOUR HOFMANN


 


Philip Seymour Hofmann não tinha nem os ombros nem o andar gingão de John Wayne na cena final de A Desaparecida ou no Rio Bravo.

Philip morreu com 46 anos, era onze anos mais novo do que Humphrey Bogart, quando este morreu de cancro.

Philip morreu de overdose, não tinha a voz do Bogart, não tinha o sorriso e o bigode espampanantes de Clark Gable .

Mas Philip será recordado como uma estrela de primeira grandeza no Olimpo dos deuses de Hollyood.

Amava a vida intensamente, não sei como é que conseguia esse milagre, adivinhava-se nele uma predisposição para o inevitável destino de ter de dar testemunho desse seu  amor através dos personagens que interpretava.

Philip conseguia navegar em latitudes extremas e longínquas entre si e, nessas viagens, expunha-se até aos limites extremos do seu amor pela vida. Umas vezes irrisório, irónico e cínico, outras vezes mergulhando nos confins dos abismos da alma humana. Raramente, o seu sorriso irresistível o abandonava.

Hofmann não era um canastrão, como foram muitos actores de sucesso..

Hofmann pertencia à genealogia de Montgomery Clift. Isso é indiscutível. Philip morreu de overdose, Clift desligou do mundo. Provavelmente, ambos morreram esmagados pela tristeza da finitude humana.

No Olimpo dos grandes actores que o cinema americano ofereceu à humanidade e às artes, estes cinco grandes intérpretes devem estar lá a olhar-nos do alto da sua genialidade. De algum modo, guiaram as nossas vidas.

Miguel Esteves Cardoso escreveu hoje no Público um artigo de homenagem a Philip Seymour Hofmann. “Era o meu actor preferido. Meu e de milhões de pessoas. Incrivelmente estava a melhorar. Só ele sabia como. Se é triste para nós, imagine-se como é e será para quem o conhecia e amava”. Obrigado Miguel, precisávamos dessa homenagem.

Philip passou à posteridade dos seres amados, como Tarkovsky, Bergman e Visconti, como Maria Callas e  Louise Brooks, como Marilyn e como Ava Gardner, como Claudio Abbado. A star is dead, a star is born.

Je pleure pour toi, je te garderai dans ma mémoire jusqu’à la fin de mes jours.

 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

REPÚBLICA FUTURA, UMA UTOPIA URGENTE



Desde 2011, está em curso um vasto programa político, cujo principal objectivo é destruir a democracia e o modelo social favorável às classes trabalhadoras, conquistados pela revolução do 25 de Abril.

Trata-se de uma conspiração conduzida pelo actual governo de ultra-direita liberal, com o apoio da União Europeia e dos grupos financeiros e empresariais que dominam a finança, a economia nacional e o Estado.

No processo que levou a esta situação, não há inocentes.

Sem que o povo português tenha sido alguma vez consultado, PS e PSD decidiram entregar o país à União Europeia e à sua moeda única. Em consequência, a economia portuguesa entrou em declínio, os portugueses empobreceram e Portugal foi perdendo progressivamente a sua soberania até ficar completamente às ordens da troika UE/FMI.

O Partido Socialista e o Partido Social-Democrata, com a colaboração do CDS, governaram o país, ininterruptamente desde 1976 e são, por isso, solidariamente responsáveis pelos caminhos que levaram ao actual desastre social, económico e político de Portugal.

Também os partidos à esquerda do PS têm responsabilidades neste processo, porque colocaram sempre e sistematicamente os seus interesses acima dos interesses do povo e do país, ocupando o seu tempo em estéreis e anacrónicas guerrilhas sectárias. Foram incapazes de dialogarem e de se entenderem contra o assalto da direita ultra liberal ao poder.

Por decisão de políticos medíocres, incompetentes e cúmplices na apropriação de bens públicos, foram sendo privatizados sectores estratégicos da economia. A corrupção aumentou à rédea solta e a economia foi sendo asfixiada pelos bancos, por empresários retrógrados e gananciosos e por políticas recessivas.

As relações laborais, o trabalho e o emprego passaram a depender da boa vontade patronal, a lei da precariedade sobrepôs-se a todas as leis, foi aumentando o desemprego e os jovens começaram a emigrar.  

Tudo isto começou a acontecer antes de 2011. A partir desta data, com a tomada do poder pela ultra-direita liberal, foi posta em marcha uma verdadeira guerra social, com resultados catastróficos: aumento brutal do desemprego e diminuição dos recursos das famílias, perseguição aos reformados e pensionistas e aos assalariados, especialmente aos funcionários públicos, aumentos brutais de taxas e de impostos, cortes substanciais das pensões e das reformas, cortes de salários, cortes de subsídios de férias e de natal, despedimentos na função pública, cortes na saúde, na educação, na ciência e na segurança social. A lista dos crimes do governo da ultra-direita liberal é infindável.

A grave crise do ensino público e a instabilidade nas escolas, a guerra aos professores e às instituições de ensino, os milhares de jovens que não conseguem um emprego estável e com direitos e que são obrigados a emigrar, o desprezo pela cultura, pelas artes e pela ciência, o declínio demográfico, o agravamento do envelhecimento e da desertificação das regiões do interior, são outros aspectos essenciais do sinistro legado que o governo do sr. Passos Coelho deixa ao país. Um legado que põe em causa o seu futuro.

De fora do plano de austeridade do governo ficou tudo o que cheira a capitalismo, esse capitalismo pirata que se alimenta do dinheiro dos contribuintes e da dívida do Estado, ou seja, os bancos, as PPP, os especuladores da bolsa e dos off-shores, as empresas que pagam os seus impostos na Holanda, etc. A crise da dívida e do défice beneficiou os ricos que se tornaram mais ricos, as classes trabalhadoras foram eleitas bodes expiatórios: os pobres tornaram-se indigentes, os remediados tornaram-se pobres. É este o balanço de dois anos e meio de governação social-democrata/democrata-cristã, apadrinhada pela finança internacional e pela união europeia.

A experiência de Portugal quanto à moeda única demonstra que o euro apenas serve os interesses dos países mais ricos do norte da Europa.
Uma moeda única pressupõe uma economia única, regida por mecanismos de solidariedade económica, social e financeira. Sem esses mecanismos, os países cuja economia é incomensuravelmente menos competitiva, como é o caso de Portugal, estão condenados ao empobrecimento e à destruição. A continuação de Portugal no euro conduz-nos inexoravelmente para o abismo. Por isso, devemos negociar quanto antes a nossa saída dessa moeda.

Esta questão da saída do euro é uma fronteira vermelha que separa todos os partidos do país real, incluindo os partidos de esquerda, que continuam a aceitar passivamente a moeda única e não admitem sequer discutir a alternativa contrária. Do mesmo modo, todos esses partidos se submeteram de forma acrítica e subserviente àquilo em que se transformou a União Europeia: uma espécie de União Soviética sob o comando da Alemanha, da aliança entre a direita dita “popular” e a social-democracia dita “de esquerda” e da nomenklatura de Bruxelas.

A saída do euro é a grande questão, é o problema prioritário e mais grave com que Portugal se confronta. Precisamos de sair do euro para recuperar a nossa liberdade e soberania, precisamos de ser livres para moldarmos e decidirmos o nosso futuro, um novo futuro.
Precisamos de construir uma nova sociedade, uma nova república e isso não é possível enquanto estivermos prisioneiros da Alemanha, do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia. Isso não é possível, enquanto Portugal for governado pela direita ultra-liberal que trabalha para a Goldman Sachs e para outros próceres da selva financeira capitalista.

Se formos livres de decidir o nosso destino colectivo, poderemos pensar e construir uma nova sociedade que seja solidária e justa, económica e ecologicamente sustentável, inovadora, criativa e culta.

O modelo de desenvolvimento de uma nova República Futura, deve dar prioridade à economia social, que é uma economia solidária, baseada na livre organização dos produtores, que rejeita a ganância capitalista do lucro, que promove o emprego, a inserção profissional dos jovens, a integração socioeconómica dos excluídos, dos desempregados e que valoriza o bem-estar das famílias e o futuro das novas gerações.

Os produtores, organizados segundo os princípios da economia social, deverão ser apoiados por um Banco Solidário, que seja financiado por capitais pagos pelo Estado, por taxas cobradas aos bancos e pelos lucros obtidos pelas empresas sociais. Será um banco gerido por representantes das associações autónomas de produtores.

Auto-gestão, auto-organização dos produtores e consumidores em associações autónomas são o ponto de partida para a economia social. Essas associações podem adoptar diferentes modelos, como sejam, cooperativas de produção, de consumo e de ensino, associações empresariais de produção, culturais e artísticas. Mas, só podem ser consideradas neste âmbito as empresas ou associações sem fins lucrativos, sendo que os lucros decorrentes da sua actividade deverão ser, por uma parte, investidos na própria empresa e, por outro lado, revertidos a favor do Banco Solidário.

A economia da República Futura deverá subordinar-se ao direito ao trabalho e ao pleno emprego, mas também ao direito ao lazer, à formação e à cultura em todas as idades, à felicidade e à realização pessoais ao longo do ciclo de vida de cada um, na infância, na adolescência e na juventude, na idade adulta e na idade sénior.

Pleno emprego e trabalho para todos são exigências essenciais que implicam a partilha do trabalho e trabalhar menos horas.

O desenvolvimento económico terá que ser mais igualitário, mais justo, mais prudente, mais racional e mais preocupado com o futuro da Humanidade. A defesa desse futuro implica o fim do modelo económico capitalista.

Tem que ser travada definitivamente a engrenagem que assenta na exploração, sem quaisquer limites éticos ou considerações sociais e ecológicas, dos recursos naturais e da força de trabalho. Uma engrenagem determinada cegamente pela ambição paranóica de grupos obcecados pelo crescimento ilimitado, pelos lucros sem fim e pelo poder absoluto do dinheiro.

Para os capitalistas os pobres não existem, os trabalhadores são descartáveis. Ora, o direito de propriedade não é um direito de vida e de morte, é um direito com deveres para com a sociedade, incluindo deveres de solidariedade para quem trabalha e para quem precisa. Compete ao Estado velar pela aplicação dessas obrigações.

A República Futura deverá valorizar os méritos de todos quantos contribuem para o progresso social e ser capaz de prevenir e de punir os crimes contra a economia.

Será uma nova sociedade que reserva lugar de destaque à cultura, à ciência, à educação, às artes e que será criativa na economia. Uma sociedade ecológica que sabe preservar e valorizar os seus recursos e a diversidade da natureza, que combate o desperdício e promove o consumo inteligente e adequado ao desenvolvimento justo e equilibrado dos cidadãos num quadro de sustentabilidade económica e ecológica.

Será uma nova sociedade baseada na cidadania universal, igualitária e sem discriminações, que assegura a igualdade de oportunidades, a igualdade perante a lei e a justiça, o direito ao emprego e a salários dignos, que não tolera o stress, o assédio, a discriminação e os abusos de poder no trabalho e, de um modo geral, se bate pela realização dos Direitos Humanos.

Será uma nova sociedade que reconhece de forma concreta o direito de cada cidadão a ter uma família, a procriar, a ter filhos e a poder educá-los para a cidadania e a plena realização pessoal.

Existe um descrédito generalizado dos partidos e do sistema político vigente, o que é comprovado em particular pelas elevadas percentagens de eleitores que deixaram de votar ou que votam branco ou nulo e também pelo aumento e sucesso, nas últimas eleições autárquicas, de muitas listas de candidaturas independentes.

Para que ela se concretize, a República Futura precisa que se reabilite e se dignifique a política, dando protagonismo à voz dos cidadãos e das organizações de intervenção cívica e moralizando a prática política no interior dos partidos. Precisa que se democratize a participação cidadã dentro e fora dos partidos, que se reforme o Estado e o sistema político-partidário. Exige que os partidos cumpram as promessas que defendem nos actos eleitorais, que governem de acordo com os programas sufragados pelos eleitores, que governem ao serviço do bem público e do interesse geral. Exige que qualquer grupo de cidadãos possa promover a organização e apresentação de listas de candidatos a lugares que só podem ser ocupados por eleição.

Compete ao Estado assegurar o respeito integral pelo espírito e a letra das normas do Estado de Direito, a liberdade e a justiça, a educação, a saúde e a segurança para todos e a solidariedade para com as pessoas e as famílias em dificuldade.

Na República Futura competirá também ao Estado apoiar activamente a economia social, as pequenas e as médias empresas, controlar os recursos essenciais e estratégicos como a água, a energia e as redes viárias. É também da estrita responsabilidade do Estado a obrigação de regular e supervisionar as actividades das entidades financeiras e do sector privado e combater de forma enérgica e eficaz as práticas criminosas do capitalismo financeiro.

O futuro de Portugal tem que ser reconstruído em bases inteiramente novas. Para isso, devemos ter presentes os ideais da Revolução de Abril, a experiência dos últimos quarenta anos e também memórias mais antigas.

Apesar dos inomináveis sacrifícios impostos desde 2011, a grande maioria do povo português sabe que, se não forem substituídos os partidos que têm governado Portugal desde há quase quarenta anos, Portugal continuará à deriva, sem rumo, sempre á beira da bancarrota financeira, social e política. Sente que o desemprego, a pobreza, as desigualdades sociais e a descriminação dos seniores continuarão a aumentar.

O povo português precisa de recuperar a esperança no futuro e a sua dignidade de cidadãos de país livre, que é o mais antigo da Europa e que inventou a Idade Moderna. Temos que mobilizar de maneira sensata e inteligente os nossos recursos, para que nos tornemos um país próspero e competitivo na selva da mundialização, e, ao mesmo tempo, uma sociedade solidária e justa, democrática, ecológica e moderna.

República Futura, uma utopia urgente.