Esta introdução serve para assinalar duas características do texto que pretendo escrever: tenho andado abstraído e, por isso, não vou falar de coisas sérias da actualidade. Não tenho pensado no presidente Vieira, nos seus detractores, nas contratações falhadas nem no Ola John. Tirando o desejo de ver o Luuk de Jong com a Digníssima vestida, pouco mais do Benfica me tem ocupado os pensamentos que não sejam as recordações.
A verdade é que o bom povo Benfiquista anda agitado por uma razão simples: temos saudades do Benfica, todos nós. E, como bons portugueses, há um espírito sebastianista nestas saudades. Que digo eu? O síndroma é mais antigo que a Portugalidade. Todo o mundo ocidental espera pelo seu messias (os que já estão servidos, já não esperam, mas em compensação são-lhe profundamente devotos). Em cada craque dos PALOP há um potencial Eusébio, em cada Luís Filipe Vieira existe um futuro Borges Coutinho, em cada Carlos Martins pode vir a nascer um Aimar. É assim que somos, os Benfiquistas. Em cada pré-época somos os certamente campeões da época que aí vem. Como antigamente.
Os tempos mudaram, os anos passaram e continuam a passar e o Benfica, o velho Benfica, não aparece. Há esta versão modernizadazinha e sofisticadazinha, maquilhada e propagandeada, mas o Benfica de que a gente gosta e de quem sentimos saudades bem poderia chamar-se Sport Lisboa e Godot.
Nos dias de sol sinto mais saudades do Benfica. O sol é o elemento do velho Estádio da Luz. Tudo nele era soalheiro, plácido, resplandecente. As pessoas tinham de usar boné. Com o desaparecimento do velho Estádio, perdeu-se um lugar fundamental da minha memória de infância, do princípio de mim perante o futebol. É como perder a casa de família onde crescemos – e já não é a primeira vez que exponho o assunto nestes termos.
Há uns tempos, passava em Mafra pelo sítio onde foi e, para mim, costumava ser porque sempre tinha sido, a minha escola primária. Ali, onde aprendi a ler e a dar pontapés na bola e a escrever cartas de amor “Vanda gostas de mim? Sim? Não?” exibem-se orgulhosamente três moradias quase tão sofisticadas quanto a nova Luz – uma delas até tem piscina. A visão chocou-me. Duplamente. Primeiro porque a minha escola já não estava lá. Segundo, porque eu já sabia que a minha escola não estava lá e que lá haviam construído aquelas três casas mas, ainda assim, eu estava à espera que tudo isso não tivesse nunca passado de um mal-entendido, um equívoco. E, então, quando olhei esperei sinceramente ver a minha velha escola e não ver casa alguma, como resultado de uma correcção cósmica de um erro crasso, de um atentado às minhas recordações.
Sucede o mesmo quando passo na Segunda Circular, por exemplo, e olho para o Estádio. Espero sempre ver três anéis e quatro torres de luzes a dizer Tudor. Mas o panorama teima em ser sempre o mesmo, numa visão tradicionalmente moderna. Mesmo quando chego ao Estádio em dias de jogo, o meu primeiro instinto naquele primeiro momento é esperar que o velho tenha sido reconstruído num instantinho e ocupe agora o lugar que o novo ocupou em tempos – mas que era e será sempre seu (do velho).
Todos estes pensamentos são fruto da minha abstracção e, antes disso, da passagem severa do tempo. As coisas vão mudando, nós vamos mudando. Só D. Sebastião não aparece. Tento compreender estas coisas e fico a pensar que crescer é assimilar mudanças, é depararmo-nos com elas, como quem descobre objectos estranhos, desconhecidos. Amadurecer é procurar essas mudanças e cuidar delas, ora estancando-as, ora incentivando-as. Já o envelhecimento é um exercício de perda. É perceber a irreversibilidade do que desaparece. Por mais que me custe, não voltarei a ver a minha escola, não voltarei a entrar no velho Estádio da Luz. E isso custa-me muito.