E então eles chegaram da praia, «em estado de graça», desembocando no recinto frio do Palácio da Ajuda, quase à hora do fecho, por entre resignação funcionária e trejeitos de governanta que passava por directora daquilo. A personagem era (é) real, e o desinteresse que dela emana originou uma das mais bem esgalhadas e entesoantes linhas sobre o prazer -- neste caso, feminino -- que tenho lido. Um texto que, só por si, já valia todo o livro.
[P.S. Aquilo é mesmo frio comò caraças. Há 28 anos passei uns meses por lá a pesquisar a Gazeta de Lisboa no último lustro do reinado de D. João V (1746-1750), e só não saí dali com uma pneumonia porque era então um jovem bem constituído e, há que dizê-lo, viçoso.]
Início: «Eles vinham, em estado de graça, da praia.»
Um parágrafo: «O que faria aquela mulher à noite? Não devia ser amor com o marido. Devia ser do tipo de levar dossiers para casa, do tipo de tomar ansiolíticos, desse tipo. Teria alguma vez bebido bourbon? Conheceria as campanhas publicitárias da Lucky Strike? Saberia o que sente uma mulher quando uma mão desliza por entre umas coxas, por debaixo de um vestido preto curtinho, que tem por sua vez por baixo umas cuecas de cetim -- que também podem ser pretas --, saberia o que sente uma mulher quando quer que um homem dominador apaixonado a penetre, mas ele não quer logo, que mais daí a pouco, e ele prossegue sorvendo-lhe o mel que ela produz de geração espomtânea, ele adorando-lhe o ventre inteiro que parece querer saltar para fora para ser acariciado? Saberia que há crianças que nascem de dias de sexo que começam de noite e acabam de dia, num qualuqer dia da semana em curso? Quais seriam as fantasias da directora do palácio? Que mais teria a directora para além de ambições prosaicas?»
Sarah Adamopoulos, A Vida Alcatifada, Lisboa, Fenda, 2007, pp. 17-21.