L.:
Não sei se te apercebes daquilo que estás a fazer comigo.
(Hás-de reparar que a minha frase característica para começar cartas é "não sei se..."; isto não explica nada, só é curioso)
Olha que este terreno é muito escorregadio. As coisas são como são, e se deixam de o ser pelo simples facto de não poderem ser, é cá uma destas chatices que nem queiras saber. Pelo menos para mim.
Já sonhei muito, estupidamente, e durante muitos anos. Acredita: estou até aqui de banhos gelados. (não, não vou ligar o esquentador.)
Sonhei em tempos com uma casa simples, com tudo lá dentro, para aquela 1ª mulher impossível; ela era drogada, viciada, apodrecida, doente, e eu queria estar só no mundo com ela, para a proteger, guardá-la dos mauzões, curá-la, cuidar dela, viver para ela; ser eu melhor por obrigá-la a tornar-se boa, ser eu a droga dela, ser ela a minha droga; era linda, só para mim, de uma beleza que só eu via e sabia e não conhecia e queria conhecer.
Sonhei em tempos, noites e noites, com aquela que era espantosamente bela, e tão perseguida, e tão sózinha; e queria-a só para mim, com todo o amor e toda a violência do mundo, contra outros mauzões que também esta perseguiam, contra a solidão dela, contra os canhões, marchar, marchar. Ela tinha um filho, um ex-marido com o qual nunca fora casada mas que era o pai da criança, e com o qual viveu maritalmente em casa materna, à mistura com o irmão, a mãe e uma cadela; grandes confusões que me pareceram naquela altura coisas deliciosas, maravilhas mesmo a calhar para o meu instinto de macho protector; para ela, para a minha protegida, queria tudo: queria ser rico, queria que ela fosse rica (éramos ambos uns pequenotes burguesotes), queria que o filho dela não tivesse falta de nada na vida, nem sequer do pai que já tinha.
Sonho agora contigo, penso em ti constantemente, faço a figura de urso do costume, esqueço-me do que ia a dizer, não como a papinha toda, digo coisas a despropósito, parvoíces, disparates. Enfim, todas estas bacoradas eu faria sem esforço, caso não fosses tu a terceira mulher e não a 1ª ou a 2ª; mas juro que ainda não cheguei a tal degradação.
Aqui há uns meses, escrevi-te "apanhei a doença". Podes crer. Valham-me as artes do disfarce, o poder do recalcamento, a facilidade da sublimação (?) e dos escapes sociais. Neste último caso, não me apetece quase nunca ir a uma "boite", por exemplo; sinto-me bem na simples contemplação da tua pessoa, L. À procura talvez daquela hipóteses de negação que se usa nos julgamentos; é a minha defesa a funcionar, já que o meu ataque não tem agora a elegância e a subtileza que tinha: é do género "amo-te" e chega; não tem intenção, não dá luta. Marimbo-me para o "ataque"; se tu me gramas e eu te gramo, chega mesmo.
Quanto aos teus defeitos, descansa que não me podem fazer grande mossa. O quê, a tua petulância? O teu egoísmo? Que se lixem os teus defeitos. Repito, são circunstanciais, e quanto a elas, circunstâncias, há que resolvê-las e nada mais.
Dir-se-ia, a julgar por todo este paleio, que te estou a tecer grandes teorias sobre a lógica do irracionalismo proletário ou qualquer outra treta igualmente comprida. Mas olha que não: para já, estamos sóa falar e, além disso, patatipatatá, gramo falar contigo, e, se calhar, alguma coisa se aproveita do que eu digo, tu conheces-me assim mais um bocado, as coisas ditas são mais fáceis de entender do que as caladas.
Lamento, isso sim, que tanta coisa tenha de ser dita quando se poderia ter passado tão bem sem dizer nada; tipo "tás bem?" Tou. Gramo estar contigo. Eu também. Pois. Eu também gosto de ti, seja com for.
E fosse como fosse! Agora estaríamos os dois juntos em qualquer lado, a curtir o nosso princípio, a ver qual de nós fraquejava em primeiro lugar, até que ou a morte ou a vida nos separasse.
Na tua breve passagem pela vida, acredita, não se pode fazer nada de mais belo, nem mais racional, nem mais bonito, nem que mais valha a pena.. Nem mais!
3 de Março, 1983
Já fui jovem, nem acredito. Para ler uma coisa destas, é necessário daqueles saquinhos que distribuem nos aviões.
No dia seguinte, 4 de Março de 1983, escrevi-lhe outra carta, ganda maluco, onde lhe gabava as mamas e o cu. Sejamos claros. Era uma gaja que me fazia amarinhar pelas paredes. Podre de boa.
Enfim, é mais ou menos assim que se escreve quando se é jovem, ai que saudades, aiai, e reconheçamos o interesse histórico-linguístico-antropológico do documento: "gramar", "curtir", "sózinha" com acento, as "boites", etc. Que giro.
Pois, a L. Valia cada palavrinha. Podre de boa, já tinha dito?