O som do Humahuaca foi mais frequentemente rotulado como jazz-rock, classificação com a qual os músicos não discordavam.
Este Arquivo Verde-Amarelo tem mais que uma pitada de azul e branco na sua essência. Não o azul e branco da bandeira brasileira, e sim aquele de nuestros hermanos. A Argentina não apenas emprestou o nome de uma de suas cidades ao lendário grupo Humahuaca mas também o baixista que é reconhecido como o mentor intelectual desse trabalho.
Willy Verdaguer, aquele talentoso músico vindo do país vizinho, chegou ao Brasil em 1967 como integrante dos Beat Boys, que acompanhou Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa nos festivais da TV Record. E por aqui ficou. Na década seguinte, Verdaguer conviveu com o estrelato a bordo do Secos & Molhados. Embora ele não tivesse tanta exposição, sendo a linha de frente formada por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, Willy se destacou no contrabaixo como um dos mais fantásticos instrumentistas do rock brasileiro, e ainda acumulou as funções de arranjador e diretor musical no período clássico da banda, em 1973 e 1974.
A dissolução do Secos & Molhados ocorreu no auge do sucesso, e Willy conta para os leitores da pZ como o Humahuaca foi um caminho natural desde o tempo do grupo que conquistou o Brasil: “Nos shows do Secos & Molhados, tinha um momento em que os três cantores, Ney, João e Gerson, saiam do palco para mudar o figurino. Nesse espaço de tempo, tocávamos um som instrumental que eu inventei, que foi tomando uma forma bastante pessoal pela força dos músicos e pelos arranjos inusitados, mas sem se opor ao som do Secos. Quando acabou o grupo, João Ricardo se lançou como solista e me chamou para tocar e fazer os arranjos do LP que seria conhecido como O Disco Rosa. No meu entender, um dos melhores discos de rock do Brasil. Junto com o disco, veio o show de lançamento no teatro Bandeirantes. No palco, além de João Ricardo, estava Emílio Carrera nos teclados, Roberto de Carvalho na guitarra, Márcio Werneck na flauta, sax e percussão, Dudu Portes na bateria e eu no contrabaixo. Aí, sim, quando João saía do palco para trocar de roupa, nós fazíamos três músicas minhas que eram um arraso! Fomos exaltados pela mídia como uma super-banda”.
Em 1976, enquanto João Ricardo buscava outra sonoridade para seu segundo álbum com uma nova banda que incluía Wander Taffo e Djalma Correa, e já sem Roberto de Carvalho (que logo juntaria os trapinhos e composições com Rita Lee), aconteceu o que Verdaguer classifica como inevitável: nasceu o Humahuaca. Completando a formação, o retorno de outro ex-Secos & Molhados à turma: o guitarrista John Flavin.
O som do Humahuaca foi mais frequentemente rotulado como jazz-rock, classificação com a qual os músicos não discordavam, embora ressaltassem a presença de inúmeras características próprias dentro de um gênero que, por si só, já tinha grande abrangência. A preocupação com o fator social sempre fez parte desse coquetel que formou a identidade da banda.
Em outubro de 1976, Fleury Tavares escreveu para o Jornal de Música que o carnavalito, uma forma de música regional argentina, tem muito a ver com a música nordestina brasileira, no sentido de que as duas retratam o homem sofrido, que passa fome, mas que é forte. Acontece que o Humahuaca tinha elementos de música brasileira em seu jazz-rock, e, claro, de músicas regionais latino-americanas também, incluindo a argentina. E confirmando a causa sócio-político-cultural, o batismo da banda se deu com o nome da pequena cidade do norte argentino, localidade de condições de vida dificílimas. “Representa a luta do homem, não para conquistar nada, mas para apenas continuar sendo. O outro motivo é que esse nome tem uma sonoridade muito forte e enigmática”, afirma Verdaguer, que havia declarado em janeiro de 1978 à revista Música: “(…) a gente estabeleceu um paralelo entre o homem do campo e o músico brasileiro, que trabalha, sua e não ganha nada”.
Entre as apresentações importantes no primeiro período estão alguns shows no bar Bebop-A-Lula. Em alguns, o grupo contou com participações do guitarrista argentino Daniel Mancini e de Billy Bond, um verdadeiro showman italiano que, com seus trabalhos na Argentina e, depois, no Brasil, tornou-se um dos principais músicos de rock da América do Sul. Outro marco, embora caótico, foi o grande show na Portuguesa de Desportos. E, como contava o baterista Dudu Portes ao Jornal de Música, “queremos encaminhar a coisa mais para o lado do recital. Sabe, o som da gente é uma coisa meio erudita, cheio de detalhes. Assimilamos tudo e interpretamos da nossa maneira. Nosso trabalho abre um dado em cima do folclore argentino, numa fusão com o folclore brasileiro. Tango, inclusive, que na verdade não é tango no sentido literal da palavra, mas sim determinadas características nas frases musicais”.
Essa atitude cultural engajada e, sobretudo, os atributos musicais do quinteto, atraíram a atenção de Elis Regina, que em um programa especial na TV Bandeirantes, ainda em 1976, gravou a declaração: “O grupo Humahuaca, independente de ser amigo da gente, é um dos mais importantes grupos de rock da atualidade no Brasil. E a gente fez um negócio juntos aí, e espero que as pessoas gostem”. Ela sorri, segura da força da apresentação que se segue, gravada ao vivo em estúdio. A percussão de Dudu Portes, a flauta de Márcio Werneck, o baixo de Willy, a guitarra de John Flavin e as teclas de Emílio Carrera, nessa ordem, introduzem o tema, seguido por uma narração em espanhol justificando a música tema da banda. A intrincada trama progressiva que se segue dá lugar a uma canção pesada, de protesto, cantada por Elis, também em espanhol. Uma performance que lembra os melhores momentos do Color Humano e do rock platino em geral, como numa fusão com Mercedes Sosa ou Violeta Parra, sem que estas fossem imitadas pela também inimitável Elis. As palavras do baixista sobre aquela realidade dos humahuaquenhos estão encravadas na letra da música, interpretada pela cantora em um daqueles seus inconfundíveis momentos de intensidade: “Hás de saber resistir / Hás de saber não morrer / Viver”.
O clipe é um raro registro do Humahuaca em ação, e é indispensável. No momento do fechamento desta edição ele é encontrado facilmente no YouTube. “A Elis Regina foi uma pessoa extremamente sensível no pouco tempo em que convivemos. Ela quis participar de alguma forma do som do Humahuaca. E assim o fez. Colocou toda a sua sensibilidade artística e sua poderosa voz na minha canção também chamada ‘Humahuaca’. Poderia ter sido um período de contato muito maior (…)”. Poderia, conforme essa declaração de Willy Verdaguer. Mas houve desvios na rota.
Naquela época, César Camargo Mariano se envolveu em um projeto com o grupo para gravar um LP, e Elis também estava na jogada. O trabalho foi pausado devido à insatisfação da banda com o estúdio. Durante a procura por outro estúdio, pode ter passado mais tempo do que deveria, e Mariano desenvolveu um novo projeto instrumental próprio, e o disco do Humahuaca foi ficando de lado. “Foi esse o motivo pelo qual a nossa convivência com Elis foi interrompida”, afirma Verdaguer.
Dudu Portes deixou o grupo para integrar o de Elis Regina, e posteriormente o de César, o que causou uma paralização no trabalho do Humahuaca por boa parte de 1977. No período, John Flavin participou da Patrulha do Espaço, com Arnaldo Baptista, gravando o álbum Elo Perdido, arquivado até seu lançamento em 1988.
Mas eis que, com a entrada de um novo baterista, Chico Medori, eles voltam à ativa e a agenda de apresentações ficou bastante concorrida, com destaque para o memorável concerto em São Paulo, no Teatro Municipal, à meia noite do dia 10 de dezembro de 1977. “Foi sem dúvida um dos pontos altos da carreira do grupo”, lembra Verdaguer. “Não só pelo fato de tocar no Teatro Municipal de São Paulo, coisa que por si só já foi uma conquista, mas também por ter sido um show à meia-noite, a Sessão Maldita; e a plateia estava completamente lotada, nas galerias e nos camarotes, por um público entusiasta e que já conhecia a gente pelos nomes e pelas músicas. Foi realmente surpreendente, excitante e glorioso. Inesquecível”.
Um daqueles entusiastas era o contrabaixista Luiz Domingues (A Chave do Sol, Língua de Trapo, Pitbulls on Crack, Pedra etc.), um dos muitos músicos do rock brasileiro que certamente receberam influência do inquieto som do Humahuaca. Logo de início, Domingues afirma ter notado o contraste entre a decoração luxuosa do Teatro e as vestimentas freak dos hippies e roqueiros que lotavam o Municipal. “A expectativa era total. Dava para sentir no ar que o respeito pelo trabalho do Humahuaca era absoluto, quase de reverência. E, sintomaticamente, penso hoje em dia como o nível de percepção do público era muito mais elevado naquela época, pois o som que a banda fazia não era nada popular”, ele comenta. “Luzes apagando-se… A banda entra no palco e faz um concerto magnífico; o virtuosismo a favor da música, e não o contrário”.
Segundo a revista Música em matéria não assinada da edição de janeiro seguinte, O produtor Marcus Vinícius, da WEA, teria estado nos bastidores visitando os músicos e levando a proposta de gravação de um LP. O negócio não se concretizou, como também não deixou rastros na memória de Willy, o que demonstra que o contato, se ocorreu, foi apenas superficial.
A imprensa musical, contudo, noticiava uma boa lista de shows do Humahuaca nos primeiros quatro meses de 1978. Apesar do sucesso de crítica e público nas apresentações organizadas pelo incansável produtor Carlos Arruda, o grupo não duraria por muito mais tempo, separando-se sem a gravação de qualquer registro fonográfico oficial, o que de certa forma contribui para a condição de mito em que o Humahuaca se situa na história do rock brasileiro.
Todos os integrantes seguiram envolvidos com música. Willy, o mais prolífico artisticamente, fundou com outros músicos argentinos, chilenos e brasileiros, o grupo Raíces de América, que segue na ativa até hoje, dedicado a tocar música latino-americana de forma não necessariamente folclórica. Atualmente, ele integra a banda de Guilherme Arantes. Sempre ligado à história do Humahuaca, à qual se refere com um carinho singular, Willy gravou dois álbuns solo, o primeiro deles chamado Verdaguer – Humahuaca, “precisamente para dar um fechamento a essa fase da minha vida”, contendo, entre outras, composições embrionárias da época original.
E o que dizer de quando o baixista, em sua conversa exclusiva com a pZ, mandou um agrado aos leitores? Ou, nas palavras dele, “um canapé: Humahuaca está à beira de um retorno”!
Querido Willy gostei muito da história do “canapé”.
Tô nessa!!! hehehehe
Grande abraço a todos e um 2015 com muito som!!!
Grande Dudu Portes, sensacional você por aqui. Feliz 2015!
Tive o privilégio de ver shows épicos dos Sexos&Molhads João.Ricardo.e o Humahuaca inacreditável Maravilhoso demais sabe amo.a música instrumental brasileira e esses músicos são indescritíveis!!!!?????