O livro
bíblico de Gênesis apresenta um gênero literário interessante. Do capítulo 1 ao
capítulo 2, verso 3, mostra um tipo de prosa-poética, e no capítulo 2, versos 4
em diante, prosa. Nós, criacionistas, estamos familiarizados com a leitura literal desse livro, muitas
vezes cometendo alguns erros de anacronismos, isto é, lendo o texto com olhos
de um leitor ocidental, tentando extrair e/ou atribuir significados ao texto de
acordo com a nossa cultura e tempo. Porém, o livro de Gênesis não foi escrito de
modo a permitir que ocidentais pudessem fazer análises literais do “que” e “como”
aconteceu o início do Universo, do sistema solar e do planeta Terra. O autor do
texto, cuja autoria é atribuída a Moisés, não estava interessado em
fornecer essa informação para nós. Por isso que, em Gênesis 1:1, o autor não
faz apologética, ou seja, não tenta justificar ou defender a fé hebraica, mas já
parte do pressuposto de que “No princípio
criou Deus os céus e a Terra”. O texto é mais complexo, maravilhoso e
interessante do que nossa mentalidade ocidental por vezes consegue entender.
Gênesis é radical
1. Camada de significado literal. A frase “No princípio criou Deus os céus e a Terra”
se encaixa como uma luva quando entendemos que Gênesis possui várias camadas de
significado. A primeira delas é a camada mais superficial (dotada de muitos
aspectos literais) com a qual estamos mais familiarizados e que é suportada por
meio de elementos linguísticos, padrões de correspondências e demais convenções
e estruturas literárias de Gênesis. (Quer saber mais? Veja os vídeos a seguir.)
Edson Magalhães Nunes Jr é professor de Antigo Testamento (I e II), Língua Hebraica
(I, II, III e IV), narrativa bíblica e Gênesis no Unasp. É formado em Letras
(Unasp) e Teologia (Unasp), mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura
Judaica (USP), doutor em Estudos Judaicos e Arabes (USP) e pós-doutor em Literatura
Hebraica pela University of California (EUA)
Reinaldo Wenceslau
Siqueira é diretor da faculdade de Teologia do Unasp e
professor de Bíblia Hebraica, línguas bíblicas
(hebraico, aramaico, grego), exegese bíblica, judaísmo e raízes judaicas do
Novo Testamento. É formado em Teologia pela Faculté Adventiste de Théologie
(FAT, França) e em Teologia Bíblica (Unasp), mestre em Teologia (FAT, França),
doutor em Teologia pela Andrews University (EUA) e pós-doutor em Literatura
Hebraica (USP)
2. Camada de significado
histórico-cultural. A segunda
camada está relacionada a uma mensagem muitas vezes “criptografada” para nós ocidentais,
mas bem clara e compreensível para as pessoas da cultura do Oriente Médio, devido a seus costumes e sistema de crenças.
Com um
objetivo em mente exclusivamente apologético, muitas vezes nós, criacionistas, buscamos extrair apenas informações científicas a fim de deixar o texto claro
para poder apoiar a verdade que entendemos ter ao nosso lado. Mas, embora o
livro de Gênesis em si tenha sido escrito a partir de um ponto de vista
apologético, ele não está argumentando a favor de algo, mas contra algo. E a argumentação contra esse algo em específico não é uma coisa tirada de ou que
pode ser facilmente compreendida em nossa cultura ocidental do século 21.
Gênesis está
dialogando com uma cultura do seu próprio tempo, porque toda boa teologia é
feita em diálogo com o mundo em que vivemos. Os primeiros onze capítulos de
gênesis, portanto, eram uma mensagem intensa, porém, indireta de quem era o
verdadeiro Deus Criador. Como sabemos disso? Especialistas em Antigo Testamento
(nos vídeos a seguir) analisam a estrutura e a ordem dos trechos e elementos
literários que nos possibilitam entender de forma mais profunda essas outras
camadas de significado que o texto possui.
Um ponto bem
interessante se encontra logo no início do primeiro capítulo. A expressão “No
princípio”, que poderíamos de forma literal entender como sendo no início
da criação do Universo, possui outra camada interna de significado que poucos
sabem que existe. Nessa camada interna, essa expressão não gira em torno do “tempo”,
mas, sim, de uma pessoa. Quem seria essa pessoa? Quando utilizamos outras
referencias, tais como a de João 1:1 e Colossenses 1:15-23, que fazem bons paralelos com
Gênesis 1:1, vemos que a palavra B’reshit,
em hebraico, diz respeito ao Verbo (Jesus Cristo). O texto, então, poderia ser lido da
seguinte forma: “Por meio de Jesus
Cristo, Deus criou os céus e a Terra” (veja o vídeo abaixo).
Rodrigo Pereira da Silva é professor de Teologia e Arqueologia no Unasp e curador do Museu Paulo
Bork de Arqueologia do Oriente Médio. É formado em Teologia (FADBA) e Filosofia
(Unifai), especialista em Hebraico pela Universidade Hebraica (Israel), mestre em Teologia (Faje), doutor em
Teologia (Unifai), doutor em Arqueologia Clássica (USP) e pós-doutor em
Arqueologia Bíblica pela Andrews University (EUA)
Abaixo estão descritas as principais mensagens
“criptografadas” para nossa mentalidade ocidental, e a intenção, encontrada na
camada mais interna, que o autor de Gênesis teve nos onze primeiros capítulos ao comunicar às pessoas de seu tempo e cultura.
1. Deus transcende o espaço e o tempo. A sentença “No princípio criou Deus os céus e a Terra”
já inicia com uma declaração de universalidade de Deus e nos leva aos limites
do tempo (“no princípio”), ou seja, você não consegue voltar antes disso, e aos
limites do espaço (“céus e a Terra”), pois o que Deus estabelece ali, do ponto
de vista literário hebraico, é o ponto mais alto acima da terra (céus) e, em
seguida, o ponto mais baixo. Portanto, os pontos mais alto e baixo são os
extremos em termo de totalidade de espaço (tudo o que existe). Em outras
palavras, Deus é o soberano do tempo e do espaço. Isso implica a eternidade dEle.
O ponto
interessante é que essa ideia se choca imediatamente com a visão de mundo
(cosmovisão) da época em que Gênesis foi escrito. No mundo de Gênesis, os deuses
de outras culturas não eram eternos. Se analisarmos o mito de criação babilônico Enuma Elish, por exemplo, o início do seu conto narra os tempos em que os deuses
(Tiamat, para citar um) ainda não existiam. Esse é um grande contraste entre
Gênesis e os mitos de criação. Enquanto o primeiro está preocupado em descrever
o início do tempo e do espaço (tudo o que existe do ponto de vista material), o
segundo se preocupa em contar como os deuses babilônicos surgiram (os deuses
tiveram um início).
Mas essa diferença em relação a Gênesis não se encontra
apenas no mito de criação babilônico. Se analisarmos os mitos de criação
egípcios encontrados em pirâmides, perceberemos também que os deuses Atum e Kheprer criaram a si
mesmos (também tiveram um início). Em contraste, Gênesis não menciona qualquer
especulação sobre a origem de Deus e Sua existência.
Outra declaração autoevidente pode ser percebida em “No
princípio criou Deus os céus e a Terra”. O Criador é externo à Sua criação, o Criador traz à existência a
criação. Isso parece bobagem aos olhos ocidentais, mas essa era uma
noção estranha na época em que Gênesis foi escrito, porque a maioria dos deuses no mundo antigo,
com suas visões panteístas, eram manifestações do mundo natural. Portanto, se
uma pessoa dentre esses povos gentios lesse as declarações apenas da primeira
sentença de Gênesis 1:1 ficaria bastante confusa.
Gênesis se
caracteriza como um argumento contra a polêmica da teologia do seu tempo, e
particularmente contra a mitologia do seu tempo.
2. Deus cria tudo sem esforço. No primeiro
dia da criação, em Gênesis capítulo 1, verso 3, é dito: “Disse Deus: 'Deixe ser a luz [Haja luz!], e a luz veio a existir.” Você pode
perguntar: Para quem Deus estava ordenando que “deixasse ser a luz”? Para
alguns especialistas, Deus estava falando com o Verbo (Jesus Cristo). Para
outros, Deus não estaria falando a uma pessoa em particular. E o fato de Ele
não estar falando a alguém mostraria que Deus tem poder/controle sobre a
matéria, mostraria que a criação foi feita sem esforço algum. Mostraria também
que a criação não exigia nada mais do que o desejo de Deus ou um simples
comando para produzi-la. Essa mesma falta de esforço é observada nos comandos
emitidos nos versos 6, 7, 9, 11, 14, etc.
Bem, o
problema é que todos os mitos de criação de culturas que cercavam Israel eram
narrativas que exigiam muito esforço por parte dos deuses ou como resultado de
batalhas sangrentas. No conto babilônico, por exemplo, tem-se a figura de Marduk, o grande deus maior da cidade de
Babilônia, e Tiamat, uma deusa das
profundezas do oceano, e eles guerrearam um contra o outro por muito tempo até
que Marduk teria matado Tiamat e, com partes de seu corpo, teria
criado os céus e a terra. Além disso, existe ainda o fato de Deus criar a
partir do nada (ex nihilo), enquanto os
outros deuses criavam a partir de elementos que já existiam.
Um último
detalhe é que a criação de Gênesis não exigiu batalha porque só existia um
único Deus que criou tudo. Aqui vemos o monoteísmo sendo mais um detalhe
estranho aos olhos das culturas ao redor de Israel. Um Deus, um comando, um
resultado. Detalhes radicais de Gênesis para o contexto politeísta da época em
que esse livro foi escrito.
3. Astros são criaturas, não
deuses. No quarto
dia da criação descrito em Gênesis nos é dito que Deus criou os corpos celestes
(luzeiros). Embora possamos extrair informações a partir de uma leitura
literal, como todo bom criacionista faz, uma segunda camada de significado nos
mostra um desinteresse do autor pelos astros em si. O que isso quer dizer? Que
esse trecho, em particular, não tinha especial interesse em descrever
cientificamente detalhes sobre os astros, mas, sim, de mencionar as principais
funções de cada astro como, por exemplo, de separar o dia da noite, possibilitando
a contagem de um dia literal, e marcar períodos e estações também literais.
Quando
comparamos essa intenção de Gênesis com narrativas de astrologia babilônicas
percebemos uma grande diferença. Essa narrativa bíblica seria um escândalo para
os antigos babilônios que consideravam os quatros corpos celestes não apenas
como “luzes”, conforme a narrativa bíblica afirma, mas como sendo deuses. A
lua, por exemplo, era considerada a personificação do deus Sin. É por isso que eles deveriam ficar de olho nessas luzes porque
esses deuses e sua posição no céu determinariam eventos na vida humana. Em
outras palavras, o destino humano era determinado por aqueles deuses.
Por isso que
quando Gênesis diz que Deus criou apenas luzes, o livro não apenas rejeita
qualquer forma de adoração ao Sol ou à Lua, mas também rejeita o fatalismo, ou
seja, aquela ideia de que as pessoas não tinham nada que pudessem fazer, uma vez
que seus destinos já estavam traçados pela posição dos astros (deuses) no céu. Gênesis
diz “não” a isso. Não são os astros que decidem coisa alguma, eles apenas são
elementos criados.
Outro
detalhe está no fato de já existir luz no primeiro dia antes do quarto dia da
criação. Como assim? O autor bíblico errou? Não! Isso também demonstra a
qualquer leitor, ou pessoa de culturas diferentes da do Gênesis, que aqueles
astros não eram deuses. Mais uma vez a intenção nessa camada é a de ensinar uma
lição teológica ou antimitológica. Os astros apenas iluminavam ou refletiam a
verdadeira fonte de luz (o próprio Deus). Deus apenas entrega, no quarto dia, a
responsabilidade da luz àqueles portadores de luz. Assim como, após o
pecado, Ele entrega a responsabilidade para o ser humano da “criação” de si
mesmo.
É claro que esse
mesmo trecho pode ser analisado a partir de uma leitura literal, utilizando-se
dos termos originais em hebraico para tentar concluir se a luz no quarto dia
surgiu/apareceu do ponto de vista do autor bíblico ou se os astros realmente
foram criados nesse dia. Mas essa é uma discussão criacionista que permanece em
outra camada de significado mais superficial da leitura do Gênesis. Nessa
camada interna, o interesse é marcar uma oposição à mitologia da época. Você
consegue perceber como Gênesis possui várias camadas de significado sem, no
entanto, serem autoexcludentes? É como livros dentro de outros
livros a espera de ser investigados. É enigmático e revelador!
Outro
detalhe é que em Gênesis não é dado nome para o Sol e a Lua. Em vez disso, são
usados os termos “luz maior” e “luz menor”. Por que o autor não usou as
palavras hebraicas que existiam para nomear o Sol e a Lua? É possível que o
autor evitasse o uso, pois a palavra hebraica para Sol, Shemesh, também era o nome do deus sol na cultura pagã, assim como
o nome para “lua” também era o mesmo nome para a deusa da lua. Em outras
palavras, o uso teria sido evitado para que ninguém confundisse que o texto
estivesse mencionando o deus sol e a deusa lua.
A ordem dos
astros também foi pensada com estratégia por Moisés. Ao fim do verso 16 é
mencionado que “fez também as estrelas”. As estrelas são colocadas sem
importância alguma na ordem da criação, como uma reflexão tardia. Isso entra em
direta oposição ao pensamento das culturas que rodeavam Israel. Para eles,
existia uma hierarquia em ordem de importância. Os astros celestes mais
importantes eram primeiro as estrelas, porque isso designava o zodíaco deles, e
só depois vinham o Sol e a Lua. O que Gênesis faz, então, é confrontar mais uma
ideia teológica deles.
4. Seres humanos têm muito valor
e representam Deus na Terra. No sexto dia
da criação, em Gênesis 1:25-30, durante a criação dos animais e seres humanos, existe um fato autoevidente, mas que, para as culturas pagãs, eram algo
estranho: o fato de Deus ter (1) criado animais e seres humanos no mesmo dia,
para (2) viver no mesmo ambiente e (3) comer a mesma comida. Isso mostrava às
pessoas da época que a humanidade e o reino animal tinham uma relação muito
próxima (similaridade); contudo, ainda mostrava que a humanidade tinha algo a
mais que os animais (dessemelhança).
No verso 26,
é mencionado que a humanidade foi criada à imagem e semelhança do próprio Deus.
No contexto cultural pagão em que Gênesis foi escrito, reis estabeleciam
imagens de si mesmos e, assim, definiam territórios em vários lugares. Para
alguns especialistas em Antigo Testamento, um dos significados do fato de os seres
humanos terem sido feitos à imagem e semelhança de Deus está em dizer que os seres humanos eram representantes de Deus na Terra,
estabelecendo o território de Deus em todo o planeta.
Mais uma vez
Gênesis faz um ataque à cosmovisão mitológica da época com uma visão de
esperança diante do fatalismo, uma vez que nessas culturas os seres humanos possuíam
pouca dignidade e valor, e foram criados para ser apenas escravos dos deuses
para atender às necessidades deles, inclusive as de comida.
5. O clímax da criação é o tempo
sagrado e imaterial. No sétimo
dia da criação (capítulo 2) mostra-se, ao contrário de outras culturas, que o
clímax da criação não é o ser humano ou os outros elementos da criação, mas,
sim, um templo dentro de um tempo sagrado e abençoado, que mostra que a criação
é um empreendimento divino e santo.
Portanto,
quando lemos Gênesis 1, não em um contexto do século 21, mas em seu próprio
contexto, isso ajuda a revelar que o ponto principal dessa camada de Gênesis 1
é sobre como podemos ser capazes de nos apropriar de Gênesis no século 21.
Gênesis 1 é uma declaração radical que voa na face da “sabedoria” recebida no
período em que Gênesis veio a existir. E é uma pena quando criacionistas fazem
apenas uma leitura literal, uma leitura de apenas uma única camada de
significado, dentre as muitas que Gênesis possui, em vez de uma declaração de
fé radical.
Todas essas cinco principais argumentações acima foram
extraídas da palestra de um especialista criacionista em Antigo Testamento (ver
vídeo completo abaixo).
Laurence Turner é professor emérito de Antigo Testamento e chefe do departamento de Estudos Teológicos do Newbold College of Higher Education (instituição de ensino superior adventista da Inglaterra). É formado em Teologia pela Columbia Union College, mestre em Divindade pela Andrews University (EUA), doutor em Teologia pela Universidade de Princeton (EUA) e doutor em Filosofia pela Universidade de Sheffield
Nota: Portanto, esse texto foi baseado
em palestras e aulas de especialistas criacionistas bíblico-literais afiliados
a instituições de ensino superior da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
(Fernando Alves)