UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

30 de novembro de 2024

AS AVENTURAS DE BUFFALO BILL (Pony Express)

 

  Em 1953 a Paramount sabia que tinha sob contrato um ator que viria se transformar em um dos maiores astros de Hollywood. Seu nome era Charlton Heston, que, como nenhum outro, estava fadado a interpretar grandes vultos da História Universal. Antes dos 30 anos Heston já fora Marco Antônio no filme amador “Julius Caesar” e a figura do presidente Andrew Jackson em “O Destino me Persegue”, contracenando com Susan Hayward. E nesse início de carreira em Hollywood, o futuro Moises, Ben-Hur, El Cid, Cardeal Richelieu, Henrique VIII, João Batista, Michelangelo e outros personagens históricos, vestiu um buckskin, aquela vestimenta feita com pele de gamo, para ser William Frederick Cody, o Buffalo Bill. Sem as longas madeixas, sem o bigode e cavanhaque com que dezenas e dezenas de vezes esse lendário personagem apareceu em filmes, Charlton Heston foi escolha mais que apropriada para dar a Buffalo Bill a característica ‘bigger than life’, ou seja, aquele herói impossível de ser abatido, alguém maior que a própria vida. Se o próprio Buffalo Bill se incumbiu de ser mais lendário que real, a Paramount não tencionou produzir um semidocumentário historicamente acurado e sim mais um western na linha do mais puro entretenimento.

 

O invencível Buffalo Bill - “As Aventuras de Buffalo Bill” (Pony Express), com roteiro de Charles Marquis Warren baseado num daqueles livrinhos (pulp) com histórias de faroeste, de autoria de Frank Gruber, é um faroeste recheado de inverdades históricas, contando que em 1860 havia um movimento na Califórnia visando separar o Estado da União. A criação de um correio a cavalo impediria essa secessão uma vez que, em poucos dias, documentos e informações chegariam da Califórnia a locais distantes como Saint Joseph, no Missouri, até então acessíveis somente através das companhias que operavam as diligências. Uma delas era a Overland Stage Line, de propriedade de um certo Pemberton (Stuart Randall) que, em conluio com os irmãos Hastings - Evelyn (Rhonda Fleming) e Rance (Michael Moore) - buscavam boicotar a criação do Pony Express, o correio a cavalo, isto além de os três defenderem o separatismo. No entanto o trio não contava com o aparecimento de William F. Cody (Charlton Heston), o Buffalo Bill, e menos ainda que a bela Evelyn Hastings se apaixonasse por Cody. A elegante e encantadora Evelyn consegue fazer com que Cody se interesse por ela deixando de lado sua namorada Denny Russell (Jan Sterling), filha do empreendedor que criaria a Pony Express. Pemberton é aliado de Joe Cooper (Henry Brandon), comerciante que fornece armas aos índios comandados por Yellow Hand (Pat Hogan). Além dos inimigos da criação do Pony Express, também Yellow Hand e seus bravos atacam Bill Cody que a todos enfrenta com a ajuda de seu amigo Wild Bill Hickok (Forrest Tucker) e também da valente Denny Russell. Evelyn Hastings se volta contra o irmão e contra Pemberton e passa para o lado de Buffalo Bill que, após aniquilar o grupo contrário e vencer Yellow Hand em luta pessoal, dá a partida à primeira missão do Pony Express.

 

Rhonda Fleming e Jan Sterling disputando o Buffalo Bill
Charlton Heston; Rhonda e Jan no banho

Buffalo Bill disputado pelas mulheres - A primeira parte de “As Aventuras de Buffalo Bill” é bastante divertida e repleta de frases irônicas e debochadas, como quando o cocheiro da diligência dúvida que o novo passageiro seja de fato Buffalo Bill e diz a ele: “Se você é Buffalo Bill, então eu sou Wild Bill Hickok”, tendo como resposta de Bill: “Não, você não é tão feio”. Pouco depois, ao chegar em Sacramento, Evelyn e Denny se conhecem e iniciam uma enciumada luta pois ambas são atraídas por Buffalo Bill, até que Evelyn descobre que Denny não é casada com Bill e também não será páreo para ela na conquista do homem do buckskin. Sem demora vem a sequência em que Wild Bill Hickok e Buffalo Bill se ‘cumprimentam’ da maneira mais insólita já vista em um faroeste, um esvaziando seus duplos Colts Peacemakers em direção ao outro, após o que Evelyn que a tudo assistia de uma janela diz que naquele reencontro “um aperto de mão seria muito mais natural”. Enquanto o espectador torce pela masculinizada Denny na disputa por Bill Cody, Evelyn, por amor, se afasta dos homens maus e leva vantagem na disputa. E nem poderia ser diferente já que Evelyn é refinada e linda, enquanto Denny está mais para uma original Calamity Jane, não a irresistível Doris Day de “Ardida como Pimenta”. Uma pena que em 1953 a censura não permitia mostrar mais da anatomia feminina porque, numa criativa sequência, as moças tomam banho em banheiras separadas mostrando quase nada. Enquanto isso os dois amigos fazem planos para o futuro correio a cavalo tomando alguns tragos para clarear a imaginação. Nem Charlton Heston e nem Forrest Tucker possuíam dotes de comediantes mas se esforçam para dar ao filme o tom ‘tongue-in-cheek’ (irônico) bem humorado que o roteiro pretendia.

 

Charlton Heston em luta contra Pat Hogan (Yellow Hand)

Marketing indígena - O chefe índio Yellow Hand sabe o poder que uma boa jogada, como vencer Buffalo Bill em luta mano-a-mano, lhe traria. Atualmente os ‘marqueteiros’ se encarregam desse trabalho imaginado por Yellow Hand que nada tem contra Bill Cody, mas que resultará em repeito jamais alcançado entre os índios e mesmo entre os cara-pálidas. Porém numa luta que poderia ser muito mais renhida e emocionante, Yellow Hand é vencido e, sem a ameça dos nativos, os adversários do Pony Express se tornam mais fáceis de serem vencidos, até porque Henry Brandon (Joe Cooper), o mais ameaçador dos homens maus do filme morre muito antes do confronto decisivo. O ‘momento documentário’ de “As Aventuras de Buffalo Bill” é o trajeto inicial do correio a cavalo com a troca constante de montarias nos postos do Pony Express que culmina com a chegada, 20 minutos antes do prazo de dez dias se encerrar, de Buffalo Bill. Ele adentra Sacramento a galope para alegria da população local e para sua tristeza vê sua querida amiga Denny, na tentativa de avisar o amado prestes a ser alvejado, ser vítima de uma bala disparada por Pemberton. Quanto ao marketing, ninguém no Velho Oeste soube usá-lo como Bill Cody e como este faroeste não prima pelos fatos autênticos, não foi com Yellow Hand que o herói das planícies e caçador de búfalos teve a primeira lição.

 

Acima Charlton Heston e Jan Sterling; abaixo Heston e Forrest Tucker

Jan Sterling, a moça apaixonada - Charlton Heston nem precisa atuar para impor sua figura impressionante na tela e também não tem oportunidade de mostrar que sabia sim atuar, isto porque para muitos críticos ‘Chuck’ era mais persona que ator. Forrest Tucker não tem muito o que fazer, a não ser sacar seus Colts Peacemakers com cabos virados para a frente (Colt Peacemaker em 1860?). E no duelo feminino Rhonda Fleming ganha na beleza e perde na interpretação para a sempre excelente Jan Sterling, num raro papel engraçado e que ela demostra que gostou de fazer depois de tantas interpretações dramáticas. A menosprezada Jan foi marcante no cinema desde sua interpretação como a esposa volúvel de “A Montanha dos Sete Abutres” (1950) até a sofrida passageira de “O Incidente” (1967). Outro personagem histórico que surge neste western é Jim Bridger, famoso montanhês e batedor do Exército, sendo nome de um Forte (Fort Bridger) no Wyoming. Neste faroeste o veterano Porter Hall interpreta Jim Bridges, amigo de Bill Cody e de Wild Bill Hickok. A curiosidade é que Porter Hall, que viria a falecer logo após as filmagens de “As Aventuras de Buffalo Bill”, interpretou Jack McCall em “Jornadas Heróicas (The Plainsman), 1936, sendo que Jack McCall foi o homem que, de verdade, matou Wild Bill Hickok. Evidentemente este faroeste dirigido por Jerry Hopper não lembra que o Pony Express durou menos de dois anos, ficando obsoleto com a chegada do telégrafo. Em sua longa carreira Charlton Heston estrelaria muitos westerns e se “As Aventuras de Buffalo Bill” não está entre os melhores, é boa diversão desde que não seja levado muito a sério.


Charlton Heston com Jan Sterling



25 de novembro de 2024

DUELO EM DIABLO CANYON (DUEL AT DIABLO)


         Um dos temas de mais difícil abordagem nos westerns é o racismo, invariavelmente mostrado com o ódio que desperta nos brancos, mais ainda quando de fato ocorre a miscigenação. O clássico absoluto dos faroestes que tocam nas relações entre brancos e índios é “Rastros de Ódio” (The Searchers), 1956 e antes da obra-prima de John Ford houve, entre outros, “Flechas de Fogo” (Broken Arrow), 1950, de Delmer Daves. Posteriormente Samuel Fuller filmou “Renegando Meu Sangue” (Run of the Arrow), 1957 e dois westerns dirigidos po Ralph Nelson: “Duelo em Diablo Canyon” (Duel at Diablo), de 1966 e “Quando é Preciso Ser Homem” (Soldier Blue), de 1970. Desse mesmo ano de 1970 é “Um Homem Chamado Cavalo” (A Man Called Horse) e o gênero ganhou em 1990 o premiadíssimo “Dança com Lobos” (Dances with Wolves), no qual o major John Dunbar (Kevin Costner) se casa com uma índia (Mary McDonell) que era uma menina branca que cresceu entre os índios Sioux. Do mesmo Alan Le May, autor do livro ‘The Searchers’, é ‘Kiowa Moon’, que chegou ao cinema como “O Passado não Perdoa” (The Unforgiven), injustiçado western de John Huston em que uma menina índia é sequestrada por uma família branca, o inverso de ‘The Searchers’. “Duelo em Diablo Canyon” é generoso no tema racismo ao mostrar tanto uma mulher branca entre índios quanto uma índia morta por homem branco. E para completar conta ainda com um negro tendo importante função em uma jornada da Cavalaria.


O branco escalpelador - Ellen Grange (Bibi Andersson), esposa do comerciante Willard Grange (Dennis Weaver) é sequestrada pelos Apaches e mantida na tribo por um ano até que consegue escapar e é encontrada no deserto por Jess Remsberg (James Garner), um batedor do Exército. Jess leva Ellen para onde ela mora e para onde ele está indo, a cidade de Creel. O marido de Ellen não aceita seu retorno à casa ao saber que ela engravidara de um índio. Jess compreende a situação de Ellen porque ele teve sua esposa Comanche morta e escalpelada por um homem branco. Em Creel há um Forte comandado pelo Tenente Scotty McAllister (Bill Travers) que é incumbido de transportar um carregamento de dinamite e armas até o Forte Concho, sendo necessário para isso atravessar o território Apache. A tropa de McAllister é composta por 25 soldados, muitos deles inexperientes e o tenente recruta o batedor Jess e também o ex-sargento Toller (Sidney Poitier), um negro especialista em domar cavalos. Jess descobre que o escalpo de sua esposa Comanche passou pelas mãos do xerife de Concho (John Crawford), motivo que o leva a acompanhar a tropa. Toller também aceita participar da arriscada missão porque o Exército lhe deve dinheiro que só receberá em Conchos. Willard Granger faz parte da caravana para fazer negócios em Conchos e, por fim, Ellen vê nessa viagem a possibilidade de resgatar seu filho mestiço. No caminho o batalhão é atacado pelos Apaches chefiados por Chata (John Hoyt), muito mais numerosos que o grupo militar que é praticamente dizimado, só não o sendo totalmente porque chega, do Forte Conchos, a tropa do Coronel Foster (Ralph Nelson) que rende e captura os Apaches. Jess Remsberg descobre que foi Willard Grange quem matou e tirou o escalpo sua mulher Comanche, mas durante o confronto Grange é capturado pelos Apaches e torturado até quase a morte. Jess o encontra e coloca seu revólver na mão de Granger que se mata. Ellen retorna a Creel em companhia de Jess.

 

Bibi Andersson e Dennis Weaver, desespero e revolta; desconsolo

‘Apaches mais civilizados que os brancos’ - Reputado como um dos westerns mais violentos da década - Ralph Nelson se superaria com “Quando é Preciso Ser Homem” seu western seguinte - “Duelo em Diablo Canyon” tem um roteiro exemplar juntando situações de cunho racial que tentam justificar o ódio que é despertado em seres aparentemente normais. Jess Remsberg não descansa enquanto não encontrar e matar o assassino de sua esposa, vingança motivada pela crueldade do crime. Mesmo Jess descobrindo que Willard Granger foi quem matou sua esposa Comanche para se vingar dos índios Apaches que sequestraram e, para ele provavelmente mataram, Ellen a mulher branca fugitiva que ele Jess encontrara no deserto. Willard, movido pelo ódio, entendeu justa a ‘Lei de Talião’, assim como justo é o desejo de vingança do batedor Jess. Em meio ao ódio despertado entre os brancos, há também o sentimento de vingança dos Apaches uma vez que a criança nascida da relação entre Ellen e o apache Alchise (Eddie Little Sky) pertence aos Apaches e não à mãe branca que renunciou a viver com a tribo. E a razão está com cada um dos envolvidos, fruto mais de seus resentimentos que da capacidade de raciocinar sobre as culturas uns dos outros. Ellen, que tanto sofreu, é a pessoa mais racional entre os brancos chegando a dizer que ‘encontrou mais civilidade em meio aos Apaches que entre seu povo’. Este western é de 1966 mas sua atualidade é total apesar das lutas contra a segregação em tempos em que a etnia dita os comportamentos.

Sidney Poitier; Poitier e Bill Travis; Bibi Andersson; James Garner

 Um branco humilhado e torturado - De todos os personagens de “Duelo em Diablo Canyon” o mais relevante é o interpretado por Dennis Weaver, o comerciante que tem sua esposa sequestrada pelos índios. Não bastasse a humilhação pela qual passa diante do povo de Creel por saber que sua esposa viveu um ano com os Apaches, ele ainda recebe a notícia que Ellen dera à luz a um bebê mestiço, um ultraje incontornável. O igualmente sofrido Jess ainda diz a Ellen que ela e o marido poderiam viver em outro lugar onde ninguém saberia do passado deles, ao que Ellen responde referindo-se ao bebê: “Meu povo, em qualquer lugar, jamais o criaria como um deles”. Granger perde de tal forma a clareza das idéias que se sente vingado pela perda da esposa ao matar e tirar o escalpo uma mulher Comanche como se os povos indígenas fossem todos iguais. Ellen compreende a tortura psicológica por que passa seu marido e até aceita sua reação chegando a dizer que Granger é um homem bom. A reação de Granger seria então a reação natural de qualquer homem de seu tempo e lugar e a prova disso é o sentimento de vingança do batedor de bom coração Jess, obcecado pelo desejo de encontrar e matar o assassino de sua esposa. Os ‘mais civilizados’ Apaches lutam para não terem que retornar ao confinamento em São Carlos, de onde fugiram e onde sofreram não só o cativeiro mas a liberdade e a perda de tudo que por séculos viveram segundo sua cultura. O roteiro não deixa de mostrar que os Apaches eram sim cruéis e a forma como torturaram Grange e dois outros soldados prova que o filme não tencionou poupar ninguém.

Dennis Weaver torturado psicológica e fisicamente

 Um negro na Cavalaria - Nenhum outro ator no cinema norte-americano elevou o negro à condição de ser humano forte, íntegro, inteligente e sensível, como Sidney Poitier. Isto desde seus primeiros filmes sendo os mais importantes deles “Acorrentados” (The Defiant Ones), 1958, e “Uma Voz nas Sombras” (Lilies of the Fields), 1963, este dirigido pelo mesmo Ralph Nelson. Em “Duelo em Diablo Canyon” o personagem Toller de Poitier parece ter sido criado apenas para demonstrar que pode sim um negro ser importante como militar e isto na Cavalaria que sempre os discriminou. E o cidadão Toller é o homem mais elegante de Creel, ganhando a vida no pôquer após dar adeus ao Exército e preferir auferir mais dinheiro que o mísero soldo que recebia como sargento. Cínico, Toller paira acima dos demais personagens, mesmo do oficial da Cavalaria, Tenente McAllister e há até um excesso nessa composição como se o negro necessitasse ser arrogante para se sobrepor àqueles que por séculos os segregaram. E curiosamente, foi após “Duelo em Diablo Canyon” que Poitier atuou em três filmes que, definitivamente, mudaram a história do negro no cinema, três filmes de 1967: “Ao Mestre com Carinho” (To Sir with Love), “No Calor da Noite” (In the Heat of the Night) e “Advinhe quem Vem para Jantar?” (Guess who’s Coming to Dinner). Porém como Toller, Sidney Poitier não tem oportunidade de demonstrar sua excepcional qualidade como ator. Por outro lado ele está à vontade como cowboy neste seu primeiro western e como lembrou James Garner, Poitier teve que aprender a montar e usar armas, o que fez com perícia de veterano.

Sidney Poitier em seu primeiro western

 A loucura produzida pela batalha - Se Sidney Poitier se saiu bem como homem do Oeste, certamente muito se deve a ser Ralph Nader exigente o que é constatado nas inúmeras sequências de ação repletas de quedas de cavalo e lutas corpo a corpo. As filmagens exigiram um grupo de nada menos de 13 stuntmen, entre eles Richard Farnsworth e Neil Summers que podem ser reconhecidos em pontas. As sequências de combate são convincentes e emocionantes concentrando paralelamente as questões raciais, ou seja, não há pano de fundo e o drama e ação se harmonizam perfeitamente. Um senão em “Duelo em Diablo Canyon” é a resistência dos feridos durante a batalha, como no caso do Tenente McAllister que com uma perna quebrada, ombro perfurado por flecha consegue montar e lutar bravamente. Ele que sonhava em ser General e que entrando em estado de alucinação pelos ferimentos e pelo sol inclemente, luta de espada na mão, contra inimigos invisíveis. Mesmo o negro Toller tem o braço varado por uma flecha que ao ser retirada deveria produzir dor insuportável, enfaixa o braço e volta a disparar contra os Apaches.

Muito trabalho para os stuntmen

 Dennis Weaver excelente - James Garner é sempre ótimo como cowboy, muito bom e menosprezado ator. Ganhou fama como Bret Maverick e fez muitos westerns, sempre com sua discreta competência dando credibilidade às personagens. A bergmaniana Bibi Andersson (minha favorita entre as atrizes suecas) fez sua estreia em Hollywood com esse filme que é, certamente, um de seus melhores trabalhos na meia dúzia de participações no cinema norte-americano. Totalmente desglamurizada Bibi expressa com perfeição o sofrimento de Ellen Grange, desprezada pelos brancos e maltratada também pelas índias Apaches. Não muito feliz foi a escolha de Bill Travers como oficial da Cavalaria, ele que é inglês e com seu sotaque soando inteiramente fora do contexto. Dennis Weaver que então brilhava na TV como Chester, o manquitola assistente de Matt Dillon (James Arness) em “Gunsmoke”, tem a melhor atuação de todo elenco, antecipando seu magnífico trabalho como o acuado motorista de “Encurralado” (Duel), 1971. O diretor Ralph Nelson faz uma participação como Coronel da Cavalaria. A trilha sonora musical ficou a cargo de Neil Hefti, cujo tema principal não entusiasma, mas os arranjos para as sequências de ação produzem efeitos estupendos e que somados à ótima fotografia completam este western que não fez o sucesso que merecia.

James Garner com Sidney Poitier; com Bibi Andersson; em uma sequência
arriscada; e novamente com Bibi Andersson

 


18 de novembro de 2024

ATÉ O ÚLTIMO TIRO (The Maverick Queen)

 

        Barbara Stanwyck afirmou algumas vezes que gostava mais de atuar em faroestes por se sentir melhor nos espaços abertos que dentro dos estúdios. E os westerns também gostavam de Barbara pois quase todos em que atuou resultaram em filmes bons, ótimos e até excelentes como “Dragões da Violência” (Forty Guns), 1957. O problema é que os grandes atores evitavam atuar ao lado de Barbara porque ela os engolia com suas interpretações, como aconteceu em “Sangue da Terra” (Blowing Wild), 1953, em que Anthony Quinn e Gary Cooper viram a pequena atriz se agigantar com seu talento. Já os diretores tinham prazer em trabalhar com Barbara e foi Cecil B. DeMille quem declarou que nunca havia dirigido uma atriz tão cooperativa e que não fazia exigências absurdas como as maiores estrelas de Hollywood. E Barbara era uma dessas grandes estrelas, ou pelo menos foi durante as décadas de 30 e 40 quando, em 1945, chegou a ser a atriz mais bem paga do cinema. Ao se aproximar dos 50 anos, o que poderia representar a inevitável decadência, Barbara passou a atuar mais vezes em faroestes, quase sempre interpretando mulheres dominadoras e antipáticas, exatamente como a Kit Banion de “Até o Último Tiro” (The Maverick Queen). Herbert J. Yates, o detestado chefão da Republic Pictures, satisfeito com o sucesso de crítica de “Johnny Guitar”, 1954, decidiu produzir outro faroeste ‘A’ tendo, outra vez, uma mulher como personagem principal e os demais atores como coadjuvantes. Para isso contratou Barbara Stanwyck, um dos maiores acertos de sua longa trajetória como presidente da Republic Pictures. Esse faroeste marcou a única passagem de Barbara pela Republic Pictures.

 

Uma mulher no ‘The Wild Bunch’ - A história de “Até o Último Tiro” conta como a sulista Kit Banion (Barbara Stanwyck) deixa o Estado da Virginia após a Guerra de Secessão e se torna uma bem sucedida mulher de negócios no Wyoming, onde é chamada ‘The Maverick Queen’, isto porque colocava sua marca em reses desgarradas. Na cidade de Rock Springs, Kit Banion é dona do hotel e do saloon e negocia, sempre com altos lucros, a compra de gado de pequenos criadores como a jovem Lucy Lee (Mary Murphy). A ganância faz com que Kit se envolva com o temido ‘The Wild Bunch’, o bando de Butch Cassidy (Howard Petrie), cujo braço direito é Sundance (Scott Brady), o mais recente amante de Kit. Chega ao lugar um estranho que se diz chamar Jeff Younger (Barry Sullivan) e que afirma ser sobrinho dos famosos bandidos Cole e James Younger. Jeff é, na realidade, um agente da Pinkerton. Kit, que não costuma ficar muito tempo com um amante, ao conhecer Jeff Younger se apaixona por ele sem desconfiar que o agente a usa para, através dela, se infiltrar no bando de Butch Cassidy e descobrir onde fica o esconderijo da quadrilha, local chamado ‘Hole on the Wall’. Surge então em Rock Springs o verdadeiro Jeff Younger (Jim Davis) e o agente da Pinkerton é desmascarado. Inconformado por perder Kit Banion, Sundance tenta matá-la, mas o agente a defende e Sundance é quem termina por ser morto. Com a ajuda de reforço da Pinkerton, ocorre um confronto com o bando de Butch Cassidy quando Kit é ferida mortalmente terminando assim o império da ‘Maverick Queen’.

Barbara Stanwyck com Scott Brady e com Barry Sullivan


Sundance, o ciumento - “Até o Último Tiro” foi dirigido pelo prolífico Joseph Kane, diretor especializado nos westerns-B da Republic, o que não seria uma boa recomendação para uma produção mais elaborada como este filme. Mas Herbert J. Yates sempre primou pela sovinice e Kane compensaria financeiramente o gasto com o salário de Barbara Stanwyck. Mas que surpresa! Kane realizou um filme excelente, movimentado e ao mesmo tempo repleto de intrigas, romance e traição. Afinal esse é um território que Barbara domina como ninguém, especialista que é em se mostrar mulher dominadora e que se impõe aos brutos que a cercam. Kit Banion usa os homens para satisfazer seus próprios desejos e espera sempre que o próximo seja melhor que o anterior, o que consegue quando conhece o falso Jeff Younger, por quem se apaixona. Como Kit havia desfeito seu caso com Sundance, não chega a haver um triângulo amoroso entre eles, mas sim o bandido Sundance ferido em seus brios por ter sido, por duas vezes, desarmado por Jeff e ser humilhado por Kit. Sundance é um homem sem escrúpulos e mesmo não aceitando o fim de seu relacionamento com Kit, persegue a jovem Lucy Lee, a quem tenta violentar. Toda a ação do agente da Pinkerton serve como pano de fundo para os dramas sentimentais da trama, uma vez que Lucy Lee, a exemplo de Kit Banion, também se sente atraída pelo falso Jeff Younger.

Mary Murphy; Scott Brady e Mary Murphy

 Cozinheiro espião - Cozinheiros nos faroestes são sempre tipos alegres e confiáveis, mas Jamie (Wallace Ford), cozinheiro de Lucy Lee, ainda que goste de tocar sua gaita de boca, é um homem tão triste quanto falso, sendo mais um a serviço da Maverick Queen, de quem é espião. Ou melhor, contraespião porque presta serviços a Butch Cassidy. Jamie não consegue fugir de seu passado ele que assassinou o pai de Lucy Lee, fato que ela desconhece e é usado como chantagem por Sundance e por Butch Cassidy. A história foi escrita por Zane Grey, que a deixou incompleta, sendo concluída por seu sobrinho e mais parecendo um enredo de filme noir. Joseph Kane que dirigiu tantas e tantas lutas de Roy Rogers, Gene Autry, John Wayne, Bill Elliott, Rod Cameron e outros, contra os badmen da Republic, mostrou que poderia fazer o mesmo com atores de mais nomeada como Scott Brady e Barry Sullivan, além, claro de Barbara Stanwyck. Entre as melhores sequências de “Até o Último Tiro” está aquela em que Sundance tenta matar Kit Banion e ela o joga declive abaixo da montanha onde estão, fazendo rolar um pesado tronco sobre o bandido. E não falta um assalto a um trem que transporta uma fortuna e confrontos entre Jeff Younger e Sundance, entremeando as intrigas amorosas.

Wallace Ford com Barbara Stanwyck e com Scott Brady

 Lucro é o que interessa - Herbert J. Yates vendo outros estúdios utilizarem processos de tela larga como o Cinemascope, o Technirama, o Warnerscope, o Regalscope e outros, criou para este filme o Naturama, que como os processos citados tinha a dimensão 2:35.1. Isso representou um problema para quem não conseguiu ver uma cópia do filme nesse formato. Em VHS, no Brasil, “Até o Último Tiro” foi lançado em formato 4x3 e assim era exibido também na TV, o que fazia com que em algumas sequências não houvesse atores no quadro uma vez que foram colocados nas extremidades para ocupar todo o formato do Naturama. Mesmo a cópia que é exibida no YouTube, ainda que um pouco mais larga, corta as laterais, sem falar que para alargar o formato, sacrifica um pouco das partes de cima e de baixo dos fotogramas, mutilando-os. O colorido é o Trucolor, o mesmo de outros westerns em cores da Republic, processo que é muito inferior aos mais utilizados como o Technicolor ou Eastmancolor. Yates sabia que muitos chamavam seu estúdio de ‘Repulsive Pictures’, mas ele pouco se importava, desde que seus filmes dessem lucro. Ora, se a tão importante parte técnica era menosprezada por Herbert J. Yates, não seria ele que iria exigir um roteiro que primasse pela autenticidade histórica como ocorre quando o filme junta Butch Cassidy, Sundance (Kid), os irmãos Younger e faz com que Sundance venha a morrer no Wyoming e não na Bolívia, como de fato ocorreu e é mostrado em “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, de 1969, com Paul Newman e Robert Redford. Por sinal, esse western que foi estrondoso sucesso de bilheteria, foi filmado em locações em Silverston, Colorado, onde também havia sido filmado “Até o Último Tiro” 13 anos antes.

Barry Sullivan acima e abaixo; o The Wild Bunch com
John Doucette, George Keymas, Howard Petrie e Scott Brady

 Filme de Barbara Stanwyck - O premiado compositor Victor Young compôs a trilha musical de “Até o Último Tiro” e a exemplo do que havia feito para “Johnny Guitar” (1954), compôs também uma canção (em parceria com Ned Washington) que narrasse as aventuras e desventuras de Kit Banion, canção denominada ‘The Maverick Queen’ e interpretada pela cantora Joni James. A gravação fez algum sucesso mas foi logo esquecida, ao contrário daquela interpretada por Peggy Lee em “Johnny Guitar”. Este foi um dos últimos trabalhos de Victor Young que faleceria em 1956, não sem antes receber um Oscar por “A Volta ao Mundo em 80 Dias”. Scott Brady desempenhou bem o bandido enciumado e ao mesmo tempo amoral assediando Lucy Lee. Igualmente bem Wallace Ford como o torturado e pusilânime cozinheiro. Mary Murphy mostra que poderia render mais em papeis mais complexos e Howard Petrie não foi bem aproveitado na sua característica brutalidade. Barry Sullivan não foi a escolha certa para ser o inspetor da Pinkerton, carecendo de maior agilidade física e do carisma que ele, bom ator que era, nunca teve. E carisma é o que não falta para Barbara Stanwyck que domina todo o filme, como era de se esperar em mais uma excelente atuação. E curiosamente a produção não economizou no guarda-roupa que a atriz exibe em “Até o Último Tiro”. Mais alguns filmes com a qualidade deste e a Republic Pictures seria um estúdio muito mais respeitado.

Barbara Stanwyck


9 de novembro de 2024

TERRA SAGRADA (THE TALL TEXAN)

 

        Encontrar uma valiosa pepita de ouro é motivo de alegria e este western é como achar uma pequena pedra preciosa após garimpar na aridez artística que é a maioria dos faroestes de baixo orçamento, procura que pode resultar em agradáveis surpresas. “Terra Sagrada” (The Tall Texan), 1953, é um desses casos. Certo que os nomes de Lee J. Cobb e Marie Windsor formam uma boa recomendação e o filme ser dirigido pelo quase desconhecido Elmo Williams desperta curiosidade. “Matar ou Morrer” (High Noon), 1952, dispensa comentários e fãs do gênero o reputam como um dos melhores westerns de todos os tempos, sendo do conhecimento dos cinéfilos que esse clássico, depois de pronto, não agradou ao produtor Stanley Kramer quando da exibição privada. Coube então ao editor Elmo Williams fazer nova edição dando ao filme outra dinâmica. O trabalho de Williams foi premiado em 1953 com o Oscar de Melhor Edição e nesse mesmo ano ele decidiu se aventurar pela direção. A Lippert Production financiou “The Tall Texan” que foi rodado inteiramente no Novo México em oito dias e, claro, teve a edição feita pelo próprio Elmo Williams. Além de Lee J. Cobb, estão no elenco Luther Adler e Lloyd Bridges, atores que aceitaram receber baixos salários em razão de estarem semidesempregados sob investigação do HUAC, o comitê de atividades antiamericanas, suspeitos de simpatia pelo comunismo. Lloyd Bridges ainda saboreava o enorme sucesso alcançado por “Matar ou Morrer”, no qual tivera destacada participação e Lee J. Cobb, um ano depois, entraria para a galeria dos maiores vilões do cinema por sua impressionante atuação em “Sindicato de Ladrões” (On the Waterfront).

 

        Um carroção com seis pessoas a bordo passa pelo lugarejo de nome Gila e se dirige ao sudeste dos Estados Unidos quando encontram um índio com uma pepita de ouro. O índio indica que a pedra veio de uma região habitada pelos nativos ‘membraños’, o que desperta o interesse de todos os viajantes. São eles: Laura Thompson (Marie Windsor) e o marido Jerome Niblett (Dean Train), o capitão navegador Theodore Bess (Lee J. Cobb) e o xerife Chadborune (Samuel Herrick). O xerife leva algemado Ben Trask (Lloyd Bridges), acusado de ter assassinado o próprio irmão e que será entregue às autoridades de El Paso para ser julgado. Carney (Syd Saylor) é o cocheiro do carroção e como os demais concorda em se desviar até o território dos índios membraños. No caminho são atacados por comanches e Jerome é morto, mas mesmo assim, obcecados pela possibilidade de encontrar ouro, prosseguem na viagem, quando encontram o comerciante ambulante Josh Tinnen (Luther Adler), que também é tomado pela cobiça. Os índios membraños não impedem a passagem do brancos por seu território, mas tomam-lhes as armas e Ben Trask, que é o único a falar o idioma dos nativos avisa que não devem entrar no cemitério dos membraños, local sagrado para eles e onde se encontra o veio principal de ouro. Porém a ambição já havia dominado inteiramente o grupo, exceto Ben Trask e os homens, um a um, vão morrendo sob as flechas indígenas. Somente Ben Trask e Laura conseguem escapar.

O grupo na desconfortável viagem: Lloyd Bridges, Dean Train, Marie Windsor
e Samuel Herrick; abaixo Lloyd Bridges e Lee J. Cobb

         Desde “Ouro e Maldição” (Greed), 1924, passando por “O Tesouro de Sierra Madre”, (1948) e “Escravos da Ambição” (Lust for Gold), 1949, Hollywood produziu filmes sobre a cobiça provocada pelo ouro e haveria ainda “O Ouro de Mackenna” (Mackenna’s Gold), 1969. “Terra Sagrada” retoma o tema e em seus 84 minutos de duração mostra que a ganância é capaz de dominar o ser humano expondo-o mesmo ao risco de morte. Do grupo de seis pessoas apenas o suposto fora-da-lei Ben Trask não se deixa tomar pela cobiça uma vez que seu intuito é provar que é inocente da acusação que o levaria a El Paso. Laura Thompson é, dentre o grupo, a mais ávida por enriquecer, razão maior de sua vida e ao se envolver amorosamente com Ben Trask, muda seu procedimento. A história de “Terra Sagrada” permite que o casal sobreviva, ele por sua índole e Laura por se redimir e perceber que o amor é um bem mais valioso que a riqueza, tudo sem a pieguice característica de Hollywood. Para um western, “Terra Sagrada” tem pouca ação pois o que mais interessa é o estudo psicológico de cada um dos personagens e a transformação pela qual cada um passa: a cupidez do comerciante Josh Tinnen e do simplório Carney; o xerife hesitante entre enriquecer e cumprir seu trabalho de conduzir o prisioneiro; o capitão Theodore, de passado obscuro, que assedia Laura e no clímax do confronto com os índios age altruisticamente pois sabe que não terá chance de ter ouro e nem o amor de Laura.

Marie Windsor com Lee J. Cobb e com Sud Saylor;
Samuel Herrick e Lloyd Bridges

        O carroção com diferentes personalidades que se revelam através da viagem lembra “No Tempo das Diligências” (Stagecoach), 1939, não faltando sequer o fora-da-lei (Ben Trask) que como Ringo Kid se apaixona por Dallas naquela obra-prima de John Ford. E se Laura Thompson não é uma adorável prostituta como Dallas, seu temperamento forte se impõe aos homens do grupo, algo pouco comum aos westerns. “Terra Sagrada” é um daqueles filmes que comprova que um grande orçamento não é suficiente para se realizar um bom filme e com isso criou a expectativa (não confirmada) que Elmo Williams entraria para o rol dos melhores diretores. Não há um único momento de desinteresse neste western sombrio com ótimos diálogos que devem ser creditados a Elizabeth Reinhardt pois o próprio Elmo Williams afirmou que ao mostrar o roteiro original aos atores, numa sexta-feira, todos o acharam insípido. O roteiro foi enviado a Elizabeth Reinhardt que adicionou diálogos que modificaram esplendidamente, o roteiro, devolvido na segunda-feira quando se iniciaram as filmagens. Exemplar é a frase de Laura Thompson que diz: “Ninguém deveria dar ordens a qualquer pessoa ao seu redor, ao menos que seja o dono dele, mas penso que a guerra (de secessão) resolveu essa questão”, ou quando a mesma Laura afirma que mesmo sendo mulher faz questão absoluta de ser ouvida nas decisões daquele grupo. E há a ótima sequência do ataque comanche ao carroção, a surra que o capitão Thedore dá em Josh Tinnen, surra aplicada com uma cascavel morta, e o ataque final dos índios em meio às rochas, tudo editado economicamente, no que William era mestre. Some-se a isso a surpreendente ótima atuação de Lloyd Bridges e do contido Lee J. Cobb, enquanto Luther Adler não perde o hábito de tentar roubar todas as cenas. Mas quem domina o filme é a excelente Marie Windsor, belissimamente fotografada e exalando sensualidade em meio àquele grupo de homens cegos pela cobiça.

Acima Luther Adler, Syd Saylor, Lee J. Cobb, Samuel Herrick e
Lloyd Bridges; no centro Luther Adler e Lee J. Cobb;
abaixo Marie Windsor e Lloyd Bridges

Acime L. J. Cobb, Marie Windsor e Lloyd Bridges;
Lloyd Bridges e Marie Windsor

O produtor Robert L. Lippert à esquerda;
Elmo Williams e o Oscar recebido por "Matar ou Morrer"


6 de novembro de 2024

CROOKED RIVER (RIO TORTO)

        Nos estertores dos B-Westerns, ainda havia produtores que investiam naqueles filmes de reduzido orçamento e destinados a um público menos exigente formado principalmente por crianças, adolescentes e adultos nostálgicos. Um deles foi Robert L. Lippert que no ano de 1950 contratou o diretor Thomas Carr, uma equipe de técnicos e reuniu um grupo de atores que, sempre em Iverson Ranch, filmaram seis pequenos westerns no tempo recorde de quatro semanas. Isso mesmo. Em um mês foram produzidos seis B-Westerns, sendo que o último deles teve o título “Crooked River”, possivelmente aqui exibido como “Rio Torto”. Como os elencos eram os mesmos em todos esses faroestes, o mocinho era sempre James ‘Shamrock’ Ellison, acompanhado por Russell ‘Lucky’ Hayden. Tanto Ellison como Hayden haviam sido, em diferentes períodos, sidekicks de Hopalong Cassidy. E em toda esta série a mocinha é Betty Adams, que mais tarde mudaria seu nome para Julia Adams e depois para o definitivo Julie Adams. Antes de passar para a história do cinema como a inesquecível moça de maiô branco que nada com sensualidade capaz de fazer até o monstro da lagoa negra se apaixonar pelo erotismo com que ela dava braçadas, Julie atuou em alguns westerns produzidos na Poverty Row, até chegar aos faroestes ‘A’ como “E O Sangue Semeou a Terra” (Bend of the River) e “Bando de Renegados” (The Lawless Breed), ambos de 1952 e “Sangue por Sangue” (The Man from the Alamo), 1953, respectivamente ao lado de James Stewart, Rock Hudson e Glenn Ford.

 

        Em “Crooked River” os pais de Jimmy Shamrock Ellison decidem ir para o Sudoeste e no caminho o carroção que os transportava é atacado por quatro bandidos e o casal é morto. Kent (John Cason), um dos bandidos rouba o anel do dedo do pai de Shamrock (George Chesebro) e quando Shamrock ouve tiros e encontra seus pais sem vida decide seguir a trilha que o leva até um esconderijo, uma casa nas montanhas. Nesse local mora Russ Lucky (Russell Hayden) e sua irmã Ann Hayden (Betty/Julie Adams). Lucky é o mentor da quadrilha e abriga os salteadores a contragosto da irmã. Shamrock consegue entrar na casa-esconderijo e convence Lucky a desistir de se envolver com foras da leis. Os bandidos então passam a agir sob as ordens de Deke Gentry (George J. Lewis) que tem sob seu comando uma pequena tropa de malfeitores. Shamrock reúne, com o auxílio do xerife (Raymond Hatton) e Deacon (Fuzzy Knight), um grupo de auxiliares que se defrontam com o bando de Gentry. O que decide a pequena batalha é o uso de uma metralhadora que acaba nas mãos de Shamrock e que com ela liquida o bando de Gentry.

James 'Shamrock' Ellison; Betty (Julie) Adams

         Assim como Julie Adams, James Ellison atuou em filmes importantes e foi ‘Buffalo Bill Cody’ em “Jornadas Heróicas” (The Plainsman), 1936, com Gary Cooper e no terror clássico “A Morta Viva” (I Walked with a Zombie). Contracenou também com a nossa Carmen Miranda em “Entre a Loura e a Morena” (The Gang’s All Here) e diante desses títulos “Crooked River” fica ainda menor. Não se pode esquecer, porém, que outros cowboys famosos de séries de B-Westerns como Johnny Mack Brown, Charles Starrett e Allan ‘Rocky’ Lane também fizeram parte dos elencos de grandes estúdios antes de verem suas cavalgadas e troca de tiros serem exibidos somente nas matinês. James Ellison é convincente como o herói e Julie Adams desde cedo chamava a atenção por sua delicada beleza que não escondia o talento de atriz que possuía. Juntos e com um roteiro que é interessante até se tornar incoerente com a repentina aparição de bandos numerosos que se confrontam, fugindo da história principal. E na falta de outro tipo de identificação os cavaleiros do grupo do lado do bem usam uma bandana branca na cabeça. E justamente devido a essa virada do roteiro é que “Crooked River” fica acima da média dos B-Westerns com a excelente sequência de batalha.

Betty (Julie) Adams; Russell 'Lucky' Hayden

        Na primeira parte há uma subtrama que é o interesse do bandido Kent que assedia e tenta violentar Ann, só não o conseguindo porque providencialmente aparece Shamrock. Russ Lucky passa parte do filme cego quando Kent esfrega uma espécie de soda em seus olhos e mesmo assim Lucky trava uma luta mortal contra o bandido. E chega a ser bizarra a presença de uma metralhadora Gatling, ainda a manivela, perfeitamente manejada por Shamrock. Imagina-se o quanto a garotada deve ter vibrado nos cineminhas de bairros e do interior ao assistir o mocinho colocar os bandidos para correr varrendo a planície com os tiros da metralhadora. Como não podia deixar de ser, o filme faz uso de muitas sequências de arquivo especialmente quando Ellison, que demonstra notória dificuldade para montar seu cavalo, é substituído por cenas de Bob Steele em um antigo western. A produção não fez a menor cerimônia em utilizar essas sequências de arquivo mesmo com Bob Steele tendo 1,60m de altura e Ellison 1,88m e claramente se percebe que o chapéu de Steele é quase duas vezes maior que o de Shamrock. Como diretor, atores principais (inclusive Julie Adams) e coadjuvantes foram os mesmos nos seis filmes da série, assistir “Crooked River” possibilita ter uma idéia de como foi a série toda. E este western tem apenas 52 minutos de duração, ou seja, menos de uma hora de boa diversão.

John Cason e Betty Adams
Acima 'Shamrock' Ellison com a Gatling;
abaixo o grupo de cavaleiros da bandana branca

 


4 de novembro de 2024

VIVA MARIA! (Viva Maria!)

 

         Se houve “Viva Villa!” (1930), “Viva Zapata!” (1952) e até “Viva Cisco Kid!” (1940), por que não “Viva Maria!”, colocando mulheres como líderes de movimento revolucionário? Foi o que imaginaram Louis Malle e Jean-Claude Carrière ao escrever em parceria um roteiro que tem como pano de fundo uma revolução em um certo país da América Central, muito parecido com o México. A estranheza do projeto se deve à filmografia anterior e posterior de Malle, sempre realizando filmes sérios (exceto por “Zazie no Metrô”) e também de Carrière que se tornaria constante colaborador de Luís Buñuel, inclusive no maior êxito de público do espanhol que foi “A Bela da Tarde”. Se alguém dissesse que Malle e Carrière abordariam um filme sobre revolução certamente não seria uma comédia e que até pode ser entendido como sendo do gênero western, igual aos três ‘Vivas’ acima citados e aos muitos westerns-spaghetti-zapata. Um dos mais deliciosos capa-e-espada já feitos foi “O Pirata Sangrento” (The Crimson Pirate), 1952, estrelado por Burt Lancaster, também sobre uma revolução e que se tornou exemplo clássico de escapismo no cinema. “Viva Maria!” poderia então ser classificado como western-escapismo uma vez que revolução sempre foi uma coisa séria, a não ser que seja olhada da maneira que Malle e Carrière pensaram para este filme. Sem esquecer que “Viva Maria!” se enquadra ainda na categoria de musical pois as duas heroínas cantam e dançam para alegria dos espectadores.

 


  Maria Fitzgerald O’Malley (Brigitte Bardot) desde criança ajudava o pai irlandês a explodir locais em nome de alguma causa. Foi assim em Dublin em 1891, em Londres em 1894 e até em Gibraltar em 1901. Numa dessas ações o pai de Maria é morto quando explodia uma ponte, agora em outro continente. Maria cresceu fazendo o que o pai lhe ensinara, sempre em defesa dos oprimidos que era o que mais havia no Novo Mundo. Fugindo das polícias que não lhe davam sossego, Maria se vê em meio a uma troupe circense-vaudeville itinerante que ruma para um país cuja capital é San Miguel. Faz parte do grupo de acrobatas, atiradores de facas e mágicos a cantora-dançarina Maria (Jeanne Moreau), francesa que adota a nova Maria como parceira e as duas passam a ser a atração maior da caravana. Nas andanças por San Miguel assistem aos maus tratos a que são submetidos os peões locais e o sangue irlandês de Maria O’Malley faz com que ela defenda um pobre camponês atirando contra o capataz de Rodriguez (Carlos Lópes Monteczuma), poderoso explorador dos peões. Maria francesa se enamora de Flores (George Hamilton), um líder revolucionário que é baleado e que, antes de falecer, a faz prometer que continuaria sua luta. Rodriguez e seus homens são incapazes de deter as duas Marias que tem a ajuda de toda a troupe e mais dos camponeses oprimidos que as elegem como líderes. Rodriguez pede ajuda ao ditador de San Miguel (José Ángel Espinosa) mas as forças reacionárias são vencidas e após a vitória Maria e Maria retornam a Paris agora encenando novos números que lembram suas aventuras em San Miguel.

 

Maria Bardot e Maria Moreau

  Westerns-comédia sempre existiram sendo que o ponto alto foi atingido por Mel Brooks com seu “Banzé no Oeste” (Blazing Saddles), 1974. Na primeira fase de sua carreira Woody Allen filmou duas comédias, de rebelião e guerra, em diferentes países: “Bananas” (1971) e “A Última Noite de Boris Grushenko” (1974), todos filmes posteriores a “Viva Maria!” que é de 1965. Se este filme de Louis Malle não possui o admirável nonsense típico de Brooks e Allen, até porque as duas protagonistas nunca foram atrizes exatamente engraçadas, é o roteiro quem cria situações divertidas, algumas poucas beirando o absurdo configurando a intenção escapista do filme. “Viva Maria!” se divide em duas partes distintas, sendo a primeira um autêntico musical com canções de George Delerue recebendo letras deliciosas de Malle e Jean-Claude Carrière, sequências em que Bardot e Moreau se mostram afinadas e sensuais, vestidas por modelos criados por Pierre Cardin. A lamentar que a sequência do acidental strip-tease no palco mostrasse tão pouco de Maria e Maria, apenas o que era então permitido. Música e dança dão o tom de musical nessa parte inicial, assim como se viu em “Ardida como Pimenta” (Calamity Jane), 1953, pois na primeira parte de “Viva Maria!” há pouca comicidade. Ao se envolverem em confusões em San Miguel é que “Viva Maria!” se torna filme de ação com toda sorte de zombaria ainda que com menor participação das duas Marias, mas com um roteiro que leva a perguntar onde teriam Malle e Carrière ido buscar inspiração para a interminável série de gags, senão assistindo a comédias e mais comédias, desde as Comedy Capers até chegar aos Três Patetas.

 

Centro direita Brigitte, George Hamilton e Jeanne

  Além de muita música, dança, tiros e explosões, “Viva Maria!” tem espaço para um romance entre Flores e Maria (Moreau) o qual é truncado subitamente com a morte do revolucionário galã, não sem antes acontecer a desconfortável relação dos dois dentro de uma cela, o que não desperta a sensualidade pretendida e possível. Para isso ninguém melhor que Jeanne Moreau. Fica evidente o ciúme de Maria (Bardot) ao perceber a parceira apaixonada, sentimento que se bem desenvolvido daria ainda mais sabor a um filme com forte pitada de feminismo. Não poderia faltar num roteiro de Jean-Claude Carrière o aspecto anticlerical com a ácida crítica à igreja na figura do Padre Superior (Francisco Regueira). A igreja é inicialmente mostrada como submissa ao poderoso senhor das terras e ao ditador de San Miguel e posteriormente o religioso avocando para si o direito de punir as duas revolucionárias que se tornam importantes demais representando uma ameaça para a própria igreja. Padres se vestem como se fossem membros de uma seita odiosa que lembra a Ku Klux Klan não faltando sequer a cãmara de tortura medieval para extrair uma confisão de Maria e Maria. A irreverência se completa quando o Padre Superior literalmente perde a cabeça após uma granada explodir na touca de seu hábito, isto depois de tentar se aproximar dos vencedores, nova estocada no clericlarismo. Se a primeira parte é um encanto visual e musical, a segunda une o surreal com o cômico em brilhante escapismo.

 

George Hamilton e Jeanne Moreau;
Brigitte e Jeanne com Francisco Regueira;
Francisco Regueira como o Padre Superior e sem a cabeça...

  Reunir as duas mais festejadas atrizes francesas foi uma feliz ideia pois a química entre Bardot e Moreau é perfeita. Brigitte mais coquette e Moreau com seu misterioso magnetismo. Somente Paul Newman e Robert Redford como a dupla de bandidos que acabam naAmérica do Sul viriam a formar dupla assim harmoniosa em “Butch Cassidy” (1969). Na disputa surda que as duas atrizes travam em “Viva Maria!”, La Moreau sai vencedora o que foi comprovado quando ambas competiram ao prêmio Bafta de Melhor atriz de 1965 e Jeanne saiu vencedora. Segundo consta quem interpretaria o líder Flores seria Alain Delon que teria desistido com as filmagens já em andamento. George Hamilton teve sua participação bastante reduzida e não compromete, ele que surpreenderia como ‘Don Diego Vega’ (El Zorro”) na engraçada comédia-paródia “As Duas Faces do Zorro” (The Gay Blade), de 1981. Os destaques entre os coadjuvantes ficam com Carlos López Monteczuma (Rodriguez) e Francisco Regueira, o torpe e cruel Padre Superior. A belíssima fotografia de Henri Decaë completa “Viva Maria!”, excelente diversão injustamente subestimada na filmografia de Louis Malle.

 

Paulette Dubost, Brigitte, Jeanne, Claudio Brooks e Poldo Bendandi;
abaixo José Ángel Espinosa e Carlos Lópes Moctezuma


A maravilhosa Jeanne Moreau; BB e La Moreau no trem 'El Libertador'

26 de outubro de 2024

UM HOMEM SOLITÁRIO (A Man Alone)

 


  Certos westerns como “Um Homem Solitário” (A Man Alone), são raramente lembrados, embora se encaixem na categoria de ‘clássicos do gênero’ e sendo um exemplo desse tipo de subestimação. Primeiro filme dirigido por Ray Milland e curiosamente rodado em 1955, mesmo ano de “O Mensageiro do Diabo” (The Night of the Hunter), único filme dirigido pelo também inglês Charles Laughton, com a diferença que este último é reverenciado como obra-prima. Atuar em faroestes não era uma novidade para Ray Milland que já havia participado de “Califórnia” (California) em 1947, “O Vale da Ambição” (Cooper Canyon) de 1950, e “O Último Baluarte” (Bugles in the Afternoon) de 1952. Tendo feito uma brilhante carreira como ator em Hollywood, aos 50 anos de idade Milland decidiu se aventurar na direção e justamente em um faroeste, produzido pela Republic Pictures. Esse estúdio, mais conhecido pela economia com que produzia séries de B-westerns e seriados para as matinês, estava já há alguns anos produzindo filmes de melhor qualidade. Pelo estúdio de Herbert J. Yates passaram nesse período John Ford, Orson Welles, Nicholas Ray, Lewis Milestone, John Wayne, Joan Crawford, Robert Mitchum, Maureen O’Hara e outros grandes nomes do cinema e foi Yates quem deu a Ray Milland a oportunidade de se tornar diretor. Ou melhor, diretor-ator como neste “Um Homem Solitário” (A Man Alone) seguido por outros filmes que igualmente ele viria a dirigir e estrelar. Como ator Milland atuara com destaque em alguns clássicos do filme-noir e fez de “Um Homem Solitário” um autêntico western-noir.


 

  Vindo do Texas, o pistoleiro Wes Steele (Ray Milland) cavalga pelo deserto do Arizona quando seu cavalo quebra uma perna e é sacrificado por Steele que, após extenuante caminhada se depara com uma diligência que fora assaltada e todos seus ocupantes, inclusive uma menina, foram mortos. Steele solta os cavalos porque sabe que eles conhecem o caminho para a cidade mais próxima e seguindo os animais chega à cidade de Mesa, onde é tomado como o responsável pelo assalto à diligência e por isso alvejado pelo delegado que erra o tiro e acaba morto por Steele que foge pela cidade escura e se esconde no Banco de Mesa. Há uma reunião no banco e de onde está escondido Steele ouve um desentendimento entre os dois donos do banco sobre o assalto à diligência e um dos banqueiros acaba morto com tiros pelas costas. Testemunha também desse assassinato, Steele sai do banco e se esconde na adega de uma residência que é a casa de Gil Corrigan (Ward Bond), o xerife de Mesa, cuja filha Nadine (Mary Murphy) descobre e protege Steele. O xerife Corrigan está acamado por ter contraido febre amarela e cumpre quarentena em seu quarto. Recuperado, Corrigan percebe a presença de Steele na casa e o algema, sendo pressionado pelo moradores de Mesa a enforcar o pretenso assassino. Quem lidera a turba local é Clanton (Lee Van Cleef), capanga de Stanley que é o responsável pelo assalto à diligência e pelo assassinato testemunhado por Steele no Banco de Mesa. Para Stanley veio a calhar a presença de Steele na cidade pois assim nenhuma suspeita dos crimes praticados recaíria sobre ele e sobre os pistoleiros sob suas ordens. Nadine descobre que seu pai recebia dinheiro para proteger Stanley e discute com seu pai. O xerife fica sabendo da trama para incriminar Steele e o ajuda a fugir, o que leva a população a tentar enforcar o xerife que é salvo por Steele que termina por matar os pistoleiros de Stanley, que é preso pelo xerife Corrigan. Ao final Steele decide permanecer em Mesa, ficando com Nadine que por ele se apaixonara.

 

Ray Milland (Wes Steele) no deserto do Arizona;
Ward Bond e Mary Murphy

  Embora inusitado pelos quase dez minutos sem diálogos em seu início, “Um Homem Solitário” conta uma história comum a muitos westerns que é a de alguém injustamente acusado de assassinato e que luta para provar sua inocência. Mas Milland desenvolve com precisão o roteiro criativo e intrincado utilizando técnicas próprias de dramas noir, tanto na iluminação quanto na complexidade dos personagens principais. Tendo filmado em boa parte sequências noturnas, o que poderia ser ruim para um western, Milland dá ao filme a atmosfera de mistério com a corrupção e violência presentes, como se a pequena cidade de Mesa fosse um microcosmo social. Mesmo em seu final aparentemente feliz, Wes Steele diz que permanecerá em Mesa na companhia de Nadine dizendo que “nenhum lugar é melhor ou pior que aquela cidade”, fatalismo típico das personagens do filme noir. O pessimismo é constante como quando o xerife Gil Corrigan diz a Wes Steele que não quer que sua filha se case com alguém sem maior expectativa de vida, frase que poderia ser escrita por Raymond Chandler ou Dashiel Hammett. Após dois dias em Mesa, Wes Steele diz que Mesa “é uma cidade podre, com muitas pessoas podres nela vivendo”. Ray Milland deve ter exigido bastante do cinegrafista Lionel Lindon para obter as imagens sombrias que pretendia, para as quais Lindon demonstrou competência, ele que receberia um Oscar pela fotografia do luminoso “A Volta ao Mundo em 80 Dias” e uma indicação por seu trabalho em “Quero Viver!”, produções respectivamente de 1956 e 1958.

 

Ward Bond e Mary Murphy;
abaixo Raymond Burr e Lee Van Cleef

  Este filme poderia ser chamado de “Um Homem Azarado” porque Wes Steele é daquelas pessoas que atraem a má sorte e por pouco ele não acaba pendurado em uma árvore, vítima das maquinações de Stanley proeminente cidadão de Mesa. Mesmo sendo banqueiro, Stanley usa seus capangas para praticar assaltos que lhe rendam mais dinheiro, aliciando as autoridades locais como o xerife Corrigan e seu delegado (Alan Hale Jr.). E não poderia Wes Steele ter escolhido lugar pior para se esconder que a própria casa de um xerife desonesto, mas então ocorre a primeira reviravolta na história quando a filha de Corrigan se sente atraída pelo forasteiro invasor de sua casa. Mais tarde o próprio xerife decide que deveria se voltar contra o poderoso Stanley, no que ao final é acompanhado por um dos pistoleiros a serviço de Stanley. Além do xerife e de Wes Steele, há também a abordagem psicológica de Nadine Corrigan, jovem cujo pai faz dela uma sonhadora que se guarda para um improvável casamento e que se revolta contra o autoritarismo patriarcal. Mary Murphy com os cabelos tingidos de louro e que em nada lembra o caso de Marlon Brando em “O Selvagem” fica feliz ao final com a permanência de Wes Steele ao seu lado em Mesa. O que não significa exatamente um final feliz uma vez que o xerife Corrigan sabe que terá contas a ajustar com a Justiça por encobrir as práticas criminosas de Stanley. Western sóbrio, tem um único momento de descontração ao ser apresentado o retrato falado de Wes Steele, inteiramente diferente da fisionomia de Ray Milland.

 

Ward Bond e Ray Milland; no centro Mary Murphy e Milland;
Lee Van Cleef e o retrato falado de Wes Steele

  “Um Homem Solitário” possui alguns longos diálogos (exceto por seu início) e há poucas sequências de ação, estas ocorrendo nos momentos adequados num filme de crescente tensão. Os pontos altos deste western são as sequências em que Wes Steele narra sua atribulada trajetória de vida que o fez aderir às armas até chegar a Mesa e, principalmente a tomada de consciência do xerife Corrigan, com Ward Bond em um de seus grandes momentos no cinema, justificando para a filha a razão que o fez trilhar o mau caminho mesmo carregando uma estrela no peito. Ray Milland, por mais que se esforce, parece pouco confortável como cowboy e é impossível não notar que sua camisa permanece impecável mesmo após sua longa cavalgada pelo deserto, depois das tantas perseguições que sofre e da luta brutal contra Raymond Burr. Se não convence como homem do Oeste, Milland transmite a sinceridade e a desesperança com que Wes Steele tenta mostrar sua verdadeira índole. Mary Murphy é uma atriz de limitados recursos dramáticos ao passo que Raymond Burr é sempre impressionante. O quase iniciante Lee Van Cleef e mesmo Burr são menos aproveitados do que poderiam ser. Certamente o escasso reconhecimento obtido por este magnífico western se deva a ter Ray Milland como astro principal vivendo um cowboy, o que é uma injustiça pois “Um Homem Solitário” é um dos melhores faroestes de uma década repleta de grandes filmes do gênero.


Ray Milland como Wes Steele, o homem solitário