Quem vos fala é um homem.
Bebo cada gole maquinalmente. Meu corpo é frio, rígido, sem
expressão. Bebo cada gole pausadamente, os movimentos são precisos, lentos,
pesados.
Esqueci de mencionar que faço isso sentada no meio fio de
uma esquina. Esquina essa que de um lado possui um bar e de outro também. Os
bares são tão lotados que os clientes ocupam toda a rua, no fim, é como se tudo
fosse um único estabelecimento.
Esqueci também de mencionar, que estou sentada no meio fio e
de pernas bem abertas. Que não uso calcinha e que os pelos de minha vagina
estão tão grandes como se eu nunca tivesse me depilado na vida.
Continuo sentada ali, tomando minha cerveja e observando
tudo em volta. Me chama atenção os rostos das pessoas. É
nítido que estão me observando, é nítido que estão observando entre minhas
pernas. A expressão de alguns homens é curiosa. Sou considerada por eles “uma
gostosa”. Quando têm uma imagem geral de mim logo se excitam, ainda mais quando
notam que estou de pernas abertas. Mas quando dão de cara com minha vagina e a
enorme quantidade de pelos que ela tem, as reações são adversas. Uns esbugalham
os olhos e cochicham comentários nos ouvidos dos outros. Outros se excitam,
fazem um biquinho puxando saliva pra dentro, estão vendo a coisa mais gostosa
do mundo, ao mesmo tempo põem a mão em seus paus, segurando eles, como se não
fizessem isso, seus pintos pulariam da calça e correriam em minha direção.
Alguns dão risadas escandalosas, fazem chacota dos meus pelos. Outros evitam
olhar, na verdade acabam olhando rapidamente, de canto de olho, levados pela
curiosidade, mas como se aquilo fosse proibido.
É nítido o incomodo, o rebuliço geral. Logo os comentários
entre todos, homens e mulheres clientes do bar, é que alguma coisa precisa ser
feita em relação a mim. Procuram entre si alguém que me conheça e que possa
“dar um toque” para que feche as pernas e o episódio seja encerrado.
A primeira pessoa que veio, foi uma conhecida da época de
faculdade. Nunca fomos amigas, mas sempre mantínhamos um diálogo cordial.
- Oi Mari, tudo joia? – disse ela.
- Sim – respondi.
- Então, você não deve ter percebido, mas as pessoas tão
vendo que você tá sem calcinha. Vim aqui só te dar um toque pra você fechar
mais as pernas.
- Percebi sim, e to com as pernas abertas porque quero. Não
sei se você reparou, mas desde que cheguei aqui, notei que nessa esquina, a
todo momento homens assediam mulheres, querendo forçar sexo com elas. Talvez
ninguém tenha mesmo reparado nisso, penso que é necessário “dar um toque” neles
também.
Quando era criança minha vó um dia disse, que iria ensinar a
me portar como uma mulher. Isso significava seguir todo um protocolo de
submissão e mutilação do meu próprio corpo. Aquelas lições vindas de minha vó
sempre me deixaram realmente confusa, afinal diversas vezes eu assistia ela
chorando num canto da casa, logo após ter sido espancada por meu avô na minha
frente. Não compreendia por que deveria preparar toda minha vida em pró de
alguém que no fim me faria chorar solitária.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina
peluda exposta.
A segunda pessoa que veio foi outra mulher. Dessa vez uma
desconhecida e que estava furiosa.
- O minha filha é o seguinte. Ninguém aqui é obrigado a
ficar olhando pra sua periquita cabeluda não.
- Então quer dizer que o problema são meus pelos? Sugiro que
todos arranquem seus olhos. Se disserem que os olhos lhe são essenciais para o
corpo, digo o mesmo sobre meus pelos e não serei eu a primeira a arrancar
alguma coisa aqui.
- Ah entendi, você é dessas feministas que acha que pode
fazer o que quer e acha bonito fazer esse tipo de coisa.
Quando era adolescente, estava em casa cuidando de minha
sobrinha recém nascida, na casa só havia eu e ela. De repente meu cunhado
chegou e notando que para além da nenê só havia eu e ele, começou a insinuar-se
para mim querendo que transasse com ele. Fui desconversando e tentando me
afastar enquanto ele me perseguia. Acabei ficando encurralada em um cômodo, ele
já estava com o pau para fora e dizendo que se eu não desse para ele, contaria
para meu pai que me vira na rua com um namoradinho. Provavelmente meu pai me
surraria ao descobrir que estava namorando escondido. Continuei negando transar
com ele e através de muito esforço escapei por pouco de um estupro. Quando
denunciei o caso para toda família, ao invés de ser acolhida, os comentários
que recebi, das minhas próprias tias, foram questionamentos sobre a roupa que
estava usando, que uma menina do meu tamanho, que vivia provocando um homem
como ele, sabia no que aquilo ia dar.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina
peluda exposta.
A terceira pessoa que veio, foi um homem extremamente
bêbado.
- Como é que é? Você tá procurando alguém pra te comer, é
isso? Se quiser oh, eu resolvo seu problema agora – fazia isso segurando o
pinto duro dentro da calça e balançando pra mim.
- Não, não quero ninguém pra me comer, muito menos o senhor,
que é óbvio que nunca soube dar prazer pra alguém. Além do mais não preciso de
nenhum homem para me satisfazer sexualmente. Conheço muito bem o meu corpo e
sei como proporcionar prazer a ele.
- Olha aí gente, além de puta é sapata também!
Na faculdade namorava um rapaz que se dizia de esquerda e
libertário. Várias vezes fui estuprada por ele. Afinal fui ensinada pela minha
vó a nunca negar sexo ao meu macho. Todas as vezes que ele queria sexo e eu não
queria, ele insistia, ia empurrando seu pau pra dentro de mim, até o ponto que
eu infelizmente cedia. Pensava na época que aquilo era só mais uma transa onde
eu não me satisfazia, afinal, ser satisfeita sexualmente, era uma experiência
que ainda não conhecia. Sem contar as inúmeras vezes em que me manipulou para
que conseguisse amigas minhas para transar com nós dois, dizendo que aquilo era
“amor livre”. Ao mesmo tempo, todas as vezes que me aproximava de outros rapazes,
era acusada de estar desrespeitando o nosso relacionamento e a ele.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina
peluda exposta.
O quarto que veio, foi o dono de um dos bares.
- Escuta aqui, eu não quero saber dessa pouca vergonha no
meu estabelecimento não. Você pode se retirar mocinha!
- Até onde eu sei a rua é pública. E o senhor falando sobre
pouca vergonha é um tanto engraçado. Quantos anúncios de mulheres que têm seus
corpos mercantilizados só pra poder vender cerveja têm no seu bar? Como é que
funciona? O tamanho da bunda é proporcional ao sabor da cerveja?
- Então tá bom, a hora que a polícia chegar você fala isso
pra eles.
A figura do Estado. Os inúmeros policiais que riem da cara
de mulheres que denunciam situações de abuso e violência, afirmando que não
podem fazer nada, afinal isso é assunto doméstico. O mesmo Estado que joga ano
a ano milhares de mulheres na cadeia, deixando as mesmas esquecidas, tratadas
como bicho, sem o mínimo de dignidade para o corpo feminino. Estado que teve a
maioria de suas leis cunhadas por mãos de homens e que também tem a maioria dos
seus cargos de chefia ocupados pelos mesmos. É esse o Estado que se diz neutro
e que é para todos. A minha visão se turva não sabendo enxergar a diferença
entre esse Estado e um coronel patriarca.
E minhas pernas continuavam bem abertas com minha vagina
peluda exposta.
Então, a polícia chegou. Todos os policiais eram homens.
Sabia que não demoraria muito para que me tirassem dali. Quando os gorilas
começaram a se aproximar, num espasmo meu corpo se ergueu, consequentemente
minhas pernas fecharam. Houve então em toda rua uma convulsão de aplausos.
Comemoravam alegremente aquele fechamento de pernas. A única reação que meu
próprio corpo conseguiu esboçar foi a de selar meus olhos e correr um pesado
pranto vindo deles. No mesmo instante senti que meu sexo também começou a
chorar. Uma torrente de sangue escorria pelas minhas pernas, formando poças no
asfalto em torno dos meus pés.
Os aplausos cessaram e foram substituídos pelos gritos de
horror. Porém pude perceber que entre os gritos, algumas poucas mulheres choravam
junto comigo. Em número menor ainda, alguns homens finalmente se calaram. Senti
então as pesadas mãos dos policiais me puxarem e no mesmo instante desmaiei.
Quem vos fala é um homem.
Que o horror seja gerado não pelas
pernas que se abrem. Mas pelo conteúdo das bocas que gritam denunciando toda
forma de abuso!